2004-12-13

A sombra do urso

— Mas quando conseguiu, julgo eu, nas suas relações com os inimigos de fora, reconciliar-se com uns e destruir outros, e daquele lado há tranquilidade, primeiro que tudo está sempre a suscitar guerras, a fim de o povo ter necessidade de um chefe.
— É natural.
— E também a fim de os cidadãos, empobrecidos pelo pagamento de impostos, serem forçados a tratar do seu dia-a-dia e conspirarem menos contra ele?
— É evidente.
— E, segundo julgo, se ele suspeitar que alguns deles albergam pensamentos de liberdade que os afastem da obediência a ele, provocará essas desavenças, com o pretexto de os deitar a perder, entregando-os aos inimigos. Por todos esses motivos, um tirano tem sempre necessidade de desencadear guerras.
— Forçosamente.
— Mas tal procedimento predispõe os cidadãos a odiá-lo mais.
— Pois não!
— Mas não haverá alguns dos que ajudaram a elevá-lo àquela posição e que têm poder para falar livremente, diante deles e uns com os outros, e que critiquem os acontecimentos, pelo menos aqueles que forem mais corajosos?
— É natural.
Logo, o tirano tem de eliminar todos esses, se quiser governar, até não deixar ninguém dentre amigos e inimigos que tenha alguma valia.
Platão, A República
A Rússia é um caso contemporâneo de circularidade de formas degeneradas de regime político. Com o colapso da União Soviética em 1991, Boris Yeltsin iniciou um período de aparente democracia, que rapidamente se transformou em caos. A forma como a privatização das maiores companhias estatais foi prosseguida durante esse período criou uma classe de oligarcas. Os novos “senhores da Rússia” controlavam as principais empresas do país, em particular as petrolíferas. Boris Berezovsky, Mikhail Khodorkovsky (Yukos) e Roman Abramovitch (Sibneft) são apenas alguns dos nomes mais proeminentes. De acordo com a edição russa da revista Forbes, de Abril de 2004, os 36 oligarcas mais poderosos tinham uma fortuna conjunta avaliada em mais de 110 biliões de dólares, o equivalente a 24% do PIB russo. O editor, Paul Klebnikov, foi assassinado em Moscovo, em Julho passado.

Valdimir Putin, um ex-KGB, iniciou em 2000 um processo de “depuração” oligárquica. O processo de concentração de poderes acelerou-se após o massacre de Beslan. Com a promulgação ontem do decreto que põe fim à eleição directa dos governadores da Federação Russa, a Rússia tornou-se uma tirania governada por Putin e pela clique dos siloviki.

A Yukos está em vias de liquidação: no próximo dia 19, terá lugar a venda de 77% das acções da Yuganskneftegaz, a maior subsidiária da Yukos. O destino mais do que provável das acções é a Gazprom-Rosneft, o resultado da fusão dirigida por Putin, de duas empresas controladas pelo Estado. Ao tornar-se detentora das acções da Yuganskneftegaz, esta empresa passará a controlar 25% da produção total de energia na Rússia. A “re-estatização” da Rússia prossegue em marcha forçada.

Mas Putin não parece ter apenas uma mão económica estatizante e politicamente autocrática: também não parece ter muito jeito para o tempero culinário. Há quem sugira que certas sopas indigestas que se comeram em Kiev tiveram “tempero russo”.

A leste, a civilização continua a misturar-se com o barbarismo. Os europeus parecem satisfeitos com o recente sucesso do seu “soft power” na questão ucraniana e relativizam a ascensão da tirania russa, em nome de coisas mais importantes. Tanto a França como a Alemanha são aliados estratégicos da Rússia. A inglesa BP está consideravelmente envolvida nos negócios de produção de energia na Rússia e o oligarca Abramovitch é uma celebridade londrina. Mas a persuasão europeia só por si de pouco vale: sem o poder militar norte americano na retaguarda é inútil.

Robert Kagan sugere que essa complementaridade estratégica deve ser a base da nova relação transatlântica: uma Europa “pós-histórica” como um império pacífico e “desvitalizado”, em expansão, absorvendo no seu interior os elementos políticos essenciais para a estabilidade do “crescente interior” da Heartland, sob o beneplácito americano, que reserva o seu poder militar para “desacatos” mais complicados. Kagan apoia a visão estratégica de Robert Cooper (o mesmo é dizer de Tony Blair) e de acordo com esta lógica, a eleição de uma liderança democrática na Ucrânia é apenas o primeiro passo para a absorção da Ucrânia na União Europeia.

Duas singelas perguntas. Em primeiro lugar, como se comportará o tirano de Moscovo, que, convém recordar, está “sentado” em cima de um dos maiores arsenais nucleares do mundo? Em segundo lugar, a (hipotética) absorção da Turquia é a via a prazo para a estabilização e secularização do Médio Oriente ou para a desestabilização e islamização da Europa?

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