2004-12-28

O "preço de sangue": a hipocrisia de quem?

O governo americano é repetidamente acusado de ocultar as suas verdadeiras intenções na ocupação militar iraquiana. Por detrás do discurso da democratização do Islão estará uma motivação económica: garantir o acesso a petróleo abundante e barato. Por isto, mais do que por qualquer outra razão, Bush, Cheney e Rumsfeld foram repetidamente classificados como “hipócritas” pela esmagadora maioria da intelligentsia ocidental (americana incluída). Talvez o sejam, mas nesse caso torna-se necessário densificar a classificação da hipocrisia. Uma repartição simples em três níveis é suficiente: baixa, média e alta hipocrisia.

1. Baixa hipocrisia

Os governantes americanos, tal como os britânicos, são culpados de “baixa hipocrisia”. Na verdade, a motivação geopolítica não está ausente da estratégia de ocupação do Iraque. Porquê? A resposta é simples: porque os EUA são “viciados” em petróleo, não produzem o suficiente para o consumo interno e a tendência temporal do excesso de procura interno é crescente: em 2005 as importações de petróleo representarão cerca de 56% do consumo interno total americano; em 2025 esse valor estima-se que possa atingir os 68% (dados do Annual Energy Outlook 2004, do U.S. Energy Department). Confrontado com um regime que configurava um enorme problema de segurança internacional, a presidência americana tomou a opção racional: depôs Saddam Hussein e tentou recolocar a produção petrolífera iraquiana próxima da sua capacidade potencial, de forma a aliviar a pressão da procura internacional sobre o preço do barril de crude. A estratégia não foi inteiramente bem sucedida: os terroristas islâmicos encontraram outra forma de desestabilizar e elevar o preço do petróleo. Os constantes ataques terroristas no Iraque e na Arábia Saudita, mesmo quando não são directamente dirigidos às instalações petrolíferas, contribuem para uma sensação generalizada de insegurança e isso reflecte-se no preço “spot” do crude, que incorpora hoje um prémio de risco elevado.

2. Média hipocrisia

Esta categoria é substancialmente mais “populosa”: inclui a generalidade da população ocidental e alguns governos europeus. Suponha-se que o governo americano (ou outro qualquer) assumia abertamente o problema político colocado pela dependência do petróleo e tomava uma medida inesperada mas coerente, modificando o esquema de recrutamento militar. Em particular, suponha-se que a probabilidade de incorporação militar passava a ser uma função de duas variáveis:

a) Uma variável qualitativa: é proprietário de veículos automóveis? Uma resposta afirmativa aumentava a probabilidade de incorporação militar;
b) Uma variável quantitativa: o consumo de combustível do(s) veículo(s) automóveis de que é proprietário; quanto mais elevado fosse, maior seria a probabilidade de incorporação militar.

Afinal de contas, se as vidas perdidas no Iraque, ou noutro ponto qualquer do Golfo Pérsico são o “preço de sangue” que se paga pelo petróleo, então a lógica sugerida de recrutamento militar seria uma espécie de... princípio de utilizador-pagador. Se, por absurdo, uma tal medida viesse a ser adoptada, rapidamente se descobriria que afinal todos os proprietários de Hummers, SUV’s e demais “Gargantuas e Pantagrueis” devoradores de combustível eram... idosos. Europeus e americanos são hipócritas “médios” porque querem a “paz” e a gasolina barata, recusando-se a reconhecer que a elevada concentração geográfica das reservas de petróleo nos países islâmicos torna esta conjunção altamente improvável.

Ainda na categoria “média” estão alguns governos de países europeus que se opuseram à invasão do Iraque, designadamente o governo francês. O acesso ao petróleo iraquiano estava “garantido” para os franceses, através do esquema montado pela ONU — na componente legal e na corrupção anexa. Pouco lhes importava que o governo de Saddam não estivesse a usar essas receitas para as finalidades previstas no programa Oil for Food (a aquisição de alimentos e medicamentos para a população iraquiana), mas para prosseguir um programa de construções sumptuárias para uso pessoal e, pior ainda, para continuar, de forma dissimulada, o programa de rearmamento iraquiano. Se os americanos não descobriram armas de destruição maciça no Iraque foi porque chegaram... cedo demais. Mais um ou dois anos seriam suficientes.

A generalidade dos governos da Europa continental são insensíveis a este argumento: incapazes de efectuar uma operação militar à escala da invasão do Iraque, sabem que o problema de segurança colocado pelo regime de Saddam seria sempre um problema para os americanos. São hipócritas na “preferência pela corrupção” e insensíveis ao “preço de sangue”— que é pago com o “sangue dos outros”.

3. Alta hipocrisia

Parece que não sobra ninguém para esta categoria. Não é verdade: uma boa parte da esquerda ocidental, “pacifista e anti-nuclear”, conta-se entre os maiores hipócritas. É que o ocidente até dispõe de uma tecnologia que lhe permite reduzir bastante a dependência petrolífera: a tecnologia nuclear. Porém, se algum governo ocidental ousar anunciar a construção de uma central nuclear pode contar com gigantescas manifestações destas prestimosas criaturas, que se deslocarão com grande rapidez para a “manifestação seguinte” a favor da “paz” e contra a “guerra”.

Quando o governo americano tentou diversificar a produção de petróleo, explorando as reservas do Alasca, “ecologistas e pacifistas” fizeram imediatamente saber que tal era “intolerável”. Se sabem qualquer coisa que a comunidade científica internacional desconhece, designadamente como produzir energia barata e sem riscos ambientais ou de outra espécie, nunca o revelaram. Manifestam-se indistintamente a favor da “paz” e contra “o nuclear”, recusando-se a aceitar que as limitações do conhecimento científico actual impõem escolhas políticas difíceis, eventualmente trágicas. É a pressão desta opinião pública “anti-nuclear”, que se recusa ideologicamente a qualquer avaliação racional — técnica ou moral, das alternativas viáveis ao petróleo que empurra os governos ocidentais para uma perigosa dependência energética dos países islâmicos.

Bem mereciam um altifalante a repetir-lhes em contínuo aos ouvidos, uma lenga-lenga que os pais de muitos deles conhecem bem: “hey, hey, pacifists hey, how many soldiers did you kill today?”

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