2003-03-30

Racial diversity reconsidered Algumas achas para a fogueira da discussão da chamada "affirmative-action". São interessantes as conclusões:
U.S. Commission on Civil Rights Chairman Mary Frances Berry recently averred, "It seems to me that if racial diversity is a worthy goal, rather than people squirming around to address race, they should acknowledge there is nothing wrong with giving a preference here." To the contrary, our findings suggest that not all forms of diversity are created equal. The increased presence of black and Hispanic students has not led to the expected improvements. Meanwhile, the increased presence of Asian Americans seems to have at least some positive impact.

Since higher percentages of black and Hispanic students are produced in part by affirmative action, while the same is not true for Asian-American students, it may be that affirmative action places students in academic environments for which they are unsuited, leading to tension and dissatisfaction all around. The results we have found should lead to further study of interracial relations on campus, the educational backgrounds of minority students, and the academic effects of affirmative action. Obscuring existing problems by trumpeting ever louder the benefits of diversity is no way to help students of any race.

Os sistemas de quotas parecem-me perversos, de facto. Em Portugal, as quotas existem nas universidades do continente para receber os candidatos das regiões autónomas. Resultado? Estudantes recusados na Universidade da Madeira por não terem nota de candidatura suficiente são aceites no continente com nota muito inferior à dos candidatos continentais... O mérito deve ser o único critério de acesso. Se por alguma razão o sistema falhou e não proporcionou a todos as mesmas oportunidades mínimas de sucesso, então o sistema tem de mudar. E claramente é isso que se passa em Portugal, onde o perfil social dos estudantes universitários nada tem a ver com o perfil social do resto da população. É fundamental mudar o estado das coisas, agindo a montante da entrada para a universidade, melhorando o ensino pré-escolar, primário e secundário.

Recordo-me de, há uns anos, dar explicações a duas crianças de um bairro de lata em Lisboa (no âmbito do Grupo de Acção Social do IST). Entretanto o bairro foi desmantelado e perdi o rasto deles, mas lembro-me de ter a sensação de que o meio em que estavam inseridos, a forma displicente com que os familiares lidavam com as questões escolares e o chamamento irresistível para a delinquência feito pelos mais velhos, os iriam condenar a uma vida menor, se não mesmo a uma vida de crime. Espero sinceramente que me tenha enganado e que os dois se tenham salvo e tenham muito sucesso na vida.

Estou convencido que é aqui que a nossa sociedade mais falha. Por isso concordo, no essencial, com a ideia socialista do rendimento mínimo garantido. Julgo que pode ser um instrumento útil para dar um mínimo de dignidade e de capacidade de resistência a muitas famílias, e que pode ser a salvação de muitas crianças. Partilho em parte os receios dos que dizem que um rendimento a troco de nada pode ser um incentivo à indigência, mas creio que, sendo um rendimento mínimo, os riscos de isso acontecer são mais do que compensados pelos possíveis benefícios. Em todo o caso, julgo que o sistema pode ser melhorado, por forma a conter incentivos à actividade, e que os seus resultados devem ser avaliados de uma forma científica. Espero também que o Rendimento Mínimo Garantido, ou o que quer que o novo governo venha a chamar ao programa, com alterações ou não, tenha resultados positivos, ao contrário do que parece ter-se demonstrado acerca da "affirmative-action" norte-americana.
A negação da natureza humana, desmontada com arte por Steven Pinker em The Blank Slate e por Francis Fukuyama em Our Post Human Future, é usada por alguns autores para defender o suposto idealismo dos pacifistas. É o que faz M. Scott Peck no seu "Gente da Mentira", do qual o Expresso publicou um extracto:

Suponho que seja por isso [a sugestão de que os seres humanos têm um instinto para a guerra] que os falcões se intitulam sempre como realistas e consideram os pombos como idealistas de cabeça oca. Os idealistas são pessoas que acreditam no potencial da natureza humana para a transformação. Os idealistas são pessoas que acreditam no potencial da natureza humana para a transformação. Já o afirmei aqui que o principal atributo da natureza humana é a sua mutabilidade e liberdade em relação ao instinto - que está sempre na nossa mão mudar a nossa natureza.

Claro que a natureza humana nos equipa com uma considerável flexibilidade, mas é impossível mudarmos a nossa natureza: os nossos defeitos podem ser controlados, domesticados, mas não eliminados. A maldade existe e está entre nós para ficar.

2003-03-29

A encantadora lucidez dos anos 60 diz Roberto Damatta no DN de ontem. Lucidez? Se houve década recente onde a lucidez mais faltasse foi essa. Os "soixante huitards" são incorrigíveis.
72% dos americanos apoiam a guerra apesar de saberem que ela será mais duradoura do que previsto. Podem-me incluir nessa percentagem, pois desde 11 de Setembro me considero americano por adopção.
Lembram-se da histeria do urânio empobrecido? Aí está. As Nações Unidas confirmam a contaminação, mas, segundo o Programa das Nações Unidas para o Ambiente, "os níveis de contaminação são muito baixos e não apresentam riscos tóxicos ou radioactivos imediatos para o ambiente e para a saúde humana".
Lembro-me bem de alguns artigos escritos por cientistas portugueses sobre o assunto. Recordo um artigo, no Público de 2001/1/10, de Rui Namorado Rosa, apresentado como professor universitário e antigo investigador da Junta de Energia Nuclear. É um exemplo perfeito de como se pode pôr os "pergaminhos" académicos ao serviço da ideologia e da manipulação:
O cenário que observamos configura não só hipocrisia mas, sobretudo, uma violência extrema e desproporcionada ao fim em vista (mesmo aceitando a contragosto a "bondade" da sua causa) para com o povo jugoslavo, alvo de tão bárbara agressão, à semelhança do que já aconteceu há dez anos ao povo iraquiano. Os seus territórios estão contaminados por milhares de toneladas disperso no solo, água e ar, impossível de recuperar e mantendo a sua ameaça de toxicidade e de agressão radiológica por tempo indeterminado, na prática interminável. Sem falar do urânio que, já inalado ou ingerido, acumula doses de doença ou morte nos seus actuais portadores.
Caros amigos, antes que a História nos julgue a todos nós por igual, temos de exigir que o secretário-geral da NATO [...], o conselho de mininstros da NATO e o conselho supremo da NATO na Jugoslávia e no Iraque sejam acusados pela opinião pública e, sob pressão desta e e através dos órgãos de soberania responsáveis, para que sejam levados a julgamento no Tribunal Internacional de Crimes contra a Humanidade.

Ou uma série de três artigos de José António Salcedo, professor catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto:
[...] Tecnicamente, o que ocorreu nessas regiões [Bósnia e Kosovo] foram bombardeamentos nucleares de emissão reduzida e lenta que vai perdurar durante milhares de milhões de anos.
[...]
Na minha opinião pessoal, utilizar munições com DU [urânio empobrecido] é um crime contra a humanidade, pois essas armas de destruição maciça condenam gerações futuras a uma vida miserável, quando não à morte certa [...]

Ou ainda António Eloy, no Público de 2001/1/8, de pois de citar o inevitável Noam Chomsky:
Imaginem o que acontecia se alguém explicasse que os bons kosovares estavam a viver em solo mais contaminado, em termos de curto prazo, que o da Bielorússia (Chernobyl) e já agora também aos outros, que afinal por sorte foram expulsos desse barril de pólvora?
[...]
Não nos mintam mais. Não nos mintam mais. Porque nós temos ouvidos e lemos.

Pois temos. E por isso mesmo, temos o dever de recordar estes actos deliberados de desinformação.
"Seria um erro desistir da ONU", diz Adriano Moreira. De facto, seria um erro trágico. Se acontecer, a responsabilidade cabe quase integralmente à França e à Alemanha, que se encarregaram de desacreditar completamente umas Nações Unidas com uma credidibilidade já muito abalada pela eleição recente da Líbia para dirigir a comissão de direitos humanos. Talvez esta crise lance a base para uma nova ONU. Uma ONU que não esteja, por exemplo, manietada por governos não-democráticos como o chinês.
Miguel Sousa Tavares
Se a televisão iraquiana for silenciada, se as equipas da Al-Jazira forem capturadas, ficaremos apenas com a informação do "nosso lado". É uma inestimável vantagem - no terreno de batalha e no terreno da opinião pública internacional. Melhor ainda se isso conseguir ser feito antes que comece a guerra suja que se perspectiva para Bagdad.

É fácil dizê-lo. Mas quando "o outro" lado inclui a televisão de uma ditadura, uma televisão que não é conhecida por ser propriamente livre e pluralista, a questão complica-se. Já no que diz respeito à Al-Jazira, Miguel Sousa Tavares tem razão: o seu silenciamento seria criminoso. Mas, ao contrário do que ele sugere, não vai acontecer. Os EUA prezam demais a liberdade de imprensa para fazerem alguma coisa contra a Al-Jazira.
Gangs of New York Violência, sangue, vingança. Para quê? Para nada: gratuito de todo. Uma enorme caricatura, sem qualquer tipo de interesse. O final do filme, com o cemitério que se degrada enquanto Nova Iorque, por trás, cresce, é simplesmente idiota.
Allah guard the believing leader of Iraq, the symbol of belief and Jihad, the leader Saddam Hussein Frase final do sermão do Xeque Abd Al-Ghafour Al-Qaysi na Mesquita Abd Al-Qadr Al-Gaylani de Bagdad transmitido ontem pela Al-Arabia TV no Dubai em colaboração com a Mesquita Al-Haram de Meca. O Xeque brandiu uma arma durante o sermão. Comparar com as declarações do Papa. Todas as religiões se equivalem, dizem alguns. Mas mentem.

2003-03-28

Mia Couto A Carta ao Presidente Bush, de Mia Couto, publicada hoje no Público, é um exercício de difícil classificação: ou é, de facto, a demonstração da posse de uma "arma de estupidez maciça" por parte de uma certa esquerda, ou, pelo contrário, trata-se de uma manipulação perversa dos factos. O texto é difícil de analisar, pois sendo constituído por muitas verdades, resulta numa enorme mentira.

Mia Couto elenca os países bombardeados pelos EUA desde a Segunda Guerra Mundial. A listagem parece ser rigorosa. Nela surgem, por exemplo, a Coreia (1950-1953), o Camboja (1969-1970), o Iraque (1990-2001), o Afeganistão (1998) e a Juguslávia (1999), entre outros. Uma lista exaustiva, cujo intuito é claramente apresentar os EUA como agressores inveterados. Que a grande maioria desses "bombardementos" tenham sido suportados pelas Nações Unidas e que Sul Coreanos, Kuwaitianos, Afegãos e Kosovares estejam hoje agradecidos aos EUA pelo sacrifício de vidas e dinheiro em nome da liberdade e da derrota do comunismo ou do fundamentalismo islâmico, não lhe diz nada. Apresentar os erros dos EUA pode ser um exercício útil. Classificar como erros e como imorais todas as suas intervenções destina-se a construir uma falsa realidade. Que dizer de uma lista em que o Kuwait surge na lista de agressões dos EUA? Presume-se que se refira à intervenção de libertação do Kuwait em 1991 (a data coincide), mas esses bombardeamentos foram feitos para apoiar o próprio Kuwait, para o libertar dos invasores Iraquianos, e foram feitos no âmbito de uma coligação internacional gigantesca. A manipulação é grosseira e enoja.

O desfolhante, usado no Vietname pelos EUA, serve para supostamente demonstrar que os EUA usaram armas químicas. Não importa que o desfolhante não fosse usado com o propósito directo de matar o inimigo, mas sim de despir de folhagem as árvores e arbustos que podessem servir de cobertura para o inimigo. Certamente uma táctica muito criticável, mais a mais quando se soube que esse herbicida estava altamente contaminado com uma dioxina nociva para os humanos, resultado indesejado do processo químico de fabrico do produto. Aparentemente os resultados dessa contaminação foram terríveis, embora as discussões acerca da extensão dos seus efeitos continuem, mas pode-se honestamente comparar o uso de desfolhante com o uso de armas químicas propriamente ditas? É distorcer os factos.

Também é fácil apresentar as políticas de alianças dos EUA como apoiando persistentemente a pior espécie de crápulas. Mais uma vez, é uma meia verdade. Esquece que, no tempo em que os EUA apoiaram combatentes anti-comunistas ligados ao fundamentalismo islâmico, por exemplo, o perigo para o mundo era a URSS.

Mas não, esqueço-me... Para Mia Couto, a URSS não era uma ameaça. Não. Para Mia Couto, Saddam Hussein e Kim Yong-Il não representam qualquer perigo internacional: o perigo são os EUA. Na realidade, para Mia Couto o problema é outro. Não são os EUA em si, mas o facto de representarem e promoverem o capitalismo liberal, que ele, como tantos outros, não suporta. Mia Couto, um africano, deveria saber melhor que o que falta a África é acima de tudo democracia, mas também mais capitalismo e liberalismo. As experiências comunistas e socialistas africanas deixaram África de joelhos, esfomeada.

Mas não. Esqueço-me de novo... O comunismo e o socialismo não falharam nunca: foram boicotados pelas forças sinistras do capitalismo predador, responsável pelo estado calamitoso de África... A ideologia é imune à realidade.

Mia Couto termina dizendo, dirigindo-se a Bush, que:

O maior perigo não é o regime de Saddam, nem nenhum outro regime. Mas o sentimento de superioridade que parece animar o seu Governo. O seu inimigo principal não está fora. Está dentro dos EUA. Essa guerra só pode ser vencida pelos próprios americanos. Eu gostaria de poder festejar o derrube de Saddam Hussein. E festejar com todos os americanos. Mas sem hipocrisia, sem argumentação para consumo de diminuídos mentais. Porque nós, caro Presidente Bush, nós, os povos dos países pequenos, temos uma arma de construção maciça: a capacidade de pensar.

Infelizmente essa capacidade para pensar, a existir, não se revela nesta carta lamentável de Mia Couto. Pior, infelizmente parece não existir em grandes quantidades em alguns países pequenos, tais como Portugal e Moçambique. Enquanto não percebermos que a produção científica americana, a quantidade de prémios Nobel norte-americanos, a produção cultural americana, revelam muito mais capacidade de pensar do que países como Portugal ou Moçambique têm demonstrado, não há nada a fazer. De facto, a ignorância julga-se sábia.

2003-03-23

João Pereira Coutinho, na sua última Vida de Cão, n'O Independente, faz um elogio ao ódio. Tudo bem. Mas porque não citar o artigo original, já aqui referido?
Para lá da tempestade de areia Excelente artigo de Timothy Garton Ash acerca da crise no Iraque e da posição de Blair. Diz ele que continua "a não estar convencido de que esta guerra específica neste momento específico seja legítima, necessária ou prudente" e que espera "contra a esperança que a nossa vitória seja rápida, que o regime perverso de Saddam se desmorone como um castelo de cartas e que as consequências no Médio Oriente sejam positivas". Faço minhas as suas palavras, embora pessoalmente esteja bastante mais convencido da justeza desta guerra. Confesso, no entanto, que tenho fortes receios que o regime de Saddam consiga resistir militarmente muito mais do que seria desejável. Isso levaria a uma enorme perda de vidas. A guerra é suja e violenta, é verdade. Por isso, espero que os soldados americanos e britânicos se portem à altura, que cumpram as convenções de Genebra, que sejam corajosos e que lutem honradamente pela libertação do Iraque. Espero que os danos colaterais sejam mínimos e que haja poucas vítimas civis. Espero que o Iraque em breve esteja livre de Saddam e no caminho da democracia. São muitas esperanças... talvez demasiadas.
Vital Moreira diz que os Estados Unidos precipitaram a guerra para evitar a cada mais provável demonstração de que o Iraque estava, de facto, desarmado. É uma distorção grosseira dos factos. Esquece 12 anos de resoluções por cumprir e quatro anos sem inspecções, esquece também que o regime de Saddam Hussein não fez a declaração completa de todo o seu arsenal quando apresentou milhares de páginas às Nações Unidas em finais do ano passado e que o próprio Hans Blix disse que as declarações de Bagdad estavam longe de ser esclarecedoras quanto ao paradeiro de armas químicas e biológicas supostamente já destruídas mas de que não há qualquer prova de destruição. Esquece ainda que os mísseis al-Samoud 2 não constavam da declaração do regime de Saddam Hussein. O disparo recente de mísseis Scud, que supostamente já não existiam, sobre o Kuweit deve ter dissipado as últimas dúvidas acerca da colaboração de Saddam Hussein com as Nações Unidas.

No mesmo artigo, Vital Moreira acusa um tal "lobby" judaico de estar por trás do ataque ao Iraque. A resposta eloquente é dada por Esther Mucznik no Público de sexta-feira. Como o artigo não está disponível na Web, segue um pequeno extracto da resposta:


Não vale a pena lembrar que a esmagadora maioria dos judeus americanos votou nos democratas e que o facto de alguns judeus fazerem parte do círculo próximo de Bush não é em si representativo da opinião da maioria da cominidade judaica americana. É o mesmo que dizermos que Colin Powell ou Condolezza Rice são representativos do imenso "lobby" negro que influencia os destinos da América... mas contra os estereótipos, a razão de pouco serve.


Século de Ouro e Matlab Independentemente das polémicas acerca da ausência de Manuel Alegre ou de Miguel Torga da antologia "Século de Ouro: Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX", sobre as quais não tenho competência para me pronunciar, uma coisa é verdade: a introdução à dita antologia é patética. Veja-se esta pequena transcrição:


A antologia e o aleatório

Não podemos descartar a hipótese de, num futuro não muito distante, um qualquer programa informático de geração de texto vir a produzir uma obra cujo material inscrito coincida ad litteram com Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX. É ainda possível imaginar que a produção aleatória de discurso que acabasse por chegar à coincidência com este volume não fosse resultado de uma qualquer demanda – i.e. não fosse um fim procurado – e que acontecesse no total descaso de Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX. Comparado com os condicionamentos materiais de outros momentos históricos, podemos especular que o actual terá aumentado o índice de coincidências, e que elas talvez venham a conhecer uma exponencial ocorrência e consequente trivialização. O facto de sabermos que as coincidências vão continuar a ter lugar, todavia, não nos autoriza a retirar uma qualquer moral da história. A possibilidade das coincidências é justamente o contrário: o pouco moral que a história é. Todavia, não há como obviar tão-pouco à contumácia da moralização das coincidências, oscilando entre o Cálculo e o Acaso, Deus ou o Jogo de Dados [caramba!].

Este livro dispõe-se a oferecer um máximo de resistência a esse horizonte previsível, não tão pouco plausível quando pensamos que existem já programas informáticos que geram romances e poemas [diz-se que Saramago tem, na realidade, um computador por ghost writer...]. O volume vale-se, neste sentido, e para proveito próprio, da astúcia estranha que encarna uma dispositio aleatória dos poemas. Esclareça-se. pois, que o encadeamento dos poemas antologiados foi gerado por um programa informático. Não decorreu, por consequência, da agência dos organizadores, quer da que pudesse ser imposta por uma racionalidade histórico-literária (cronológica ou outra), quer de uma ordenação pensada pensada a partir de uma evantual sucessão criteriosa dos ensaístas participantes. Este facto, desde já, desinveste a dramaticidade putativa dessa futura moral da história. O aleatório repetiria, repetirá, o aleatório. Este recurso à Máquina [sic], todavia, nos tempos que correm, não é suficiente para indexar este volume, que antologia a ficção poética, à ficção científica. O computador, pela sua «natural» domesticidade, não chega a representar um nosso alter ego. Século de Ouro, de resto, é o resultado da imbricação desse artefacto high-tech com a mais pobre tecnologia que é o «livro».


E continuam com esta prosa vazia de conteúdo só para dizerem que a ordem de apresentação dos poemas é aleatória. Mais à frente dizem que "a fidelidade a este programa [obtido, frisam, através de um script Matlab...] sublinha apenas o quanto a sequência [dos poemas] foi determinada por um puro acaso". Puro engano. O Matlab, como qualquer outro programa, não gera números aleatórios, mas pseudo-aleatórios:

RAND produces pseudo-random numbers. The sequence of numbers generated is determined by the state of the generator. Since MATLAB resets the state at start-up, the sequence of numbers generated will be the same unless the state is changed.


Mesmo que iniciassem a semente de geração dos números aleatórios com, por exemplo, o tempo de processamento, os números continuariam a não ser verdadeiramente aleatórios. Melhor seria terem baralhado convenientemente 72 cartas de jogar diferentes (52 de um baralho e 21 de outro, com costas de outra cor). Mas, nesse caso, não teriam podido escrever tanta palha. Aliás, para que se fique com uma ideia, as referências "eruditas" a Deus exMachina etc., justificadas pela utilização do Matlab, prolongam-se por cinco páginas!

Recomendo uma leitura para se compreender como as imposturas intelectuais que Sokal tão bem desmascarou continuam de boa saúde. Alguma pistas para outras referências ignorantes a conceitos matemáticos ou estatísticos: a necessidade que os autores da antologia sentiram de escolher (pseudo-)aleatoriamente entre permutações elas próprias obtidas (pseudo-)aleatoriamente e a referência à "não-linearidade" de uma série aleatória...
Tabula Rasa Steven Pinker publicou há pouco tempo o seu último livro: "The Blank Slate: The Modern Denial of Human Nature". Nele ataca as tentativas recentes de negação da natureza humana, nomeadamente da enorme influência genética na personalidade de cada um de nós e no próprio funcionamento das sociedades. Segundo Pinker, as doutrinas mais comuns neste fenómeno de negação são as da Tabula Rasa, do Bom Selvagem e do Fantasma na Máquina. Segundo a doutrina da Tabula Rasa, originada em Locke, o ser humano nasceria sem qualquer pré-programação genética, ou seja, a sua personalidade seria determinada unicamente pelas experiências pós-nascimento. A doutrina do Bom Selvagem, por outro lado, teria origem em John Dryden, embora seja normalmente atribuída a Rousseau, e diz que o ser humano nasce naturalmente livre e bom, sendo corrompido pela sociedade. Finalmente, a doutrina do Fantasma na Máquina afirma que existe uma dualidade entre corpo e mente: a mente controla o corpo, habitando-o, e não é um produto do próprio corpo. O livro está escrito de uma forma brilhante, pelo menos até onde o li até agora, encarregando-se de demonstrar a falsidade de cada uma destas doutrinas e de apontar as consequências nefastas que a crença em cada uma delas traz para as nossas sociedades.

As duas primeiras falácias são sustentáculo ideológico da esquerda. Quando a esquerda defende que é necessária prevenção, pois a repressão é uma violência desnecessária, está a basear-se na doutrina do Bom Selvagem, pois nega que a maldade possa ser inata, sendo por isso curável ou, pelo menos, possível de prevenir. Daí, por exemplo, os seus ataques às políticas de tolerância zero, aplicadas com sucesso retumbante por Giuliani em Nova Iorque. Quanto à primeira doutrina, ela tem sido aplicada com notável sucesso na negação das diferenças entre os sexos ou entre as diferentes raças. De facto, qualquer estudo científico que tente fazer uma análise das características das diferentes raças humanas é classificada automaticamente de racista. Autores como Stephen Jay Gould (1941-2002), no Capítulo 12 de "The Flamingo's Smile", argumentam que a divisão em raças é arbitrária, e não encaixa nas classificações usadas pela ciência. Em zoologia, segundo ele, abaixo no nível das espécies só se definem sub-espécies, e os critérios necessários para haver sub-espécies diferentes da espécie Homo sapiens não são preenchidos por aquilo a que chamamos raças. Terminava memo dizendo que "Human equality is a contingent fact of history". Esta análise é, claramente, ideológica. As definições de espécie e sub-espécie não são, em si, científicas. São definições de mera conveniência. Isto é claro se se compararem as definições de espécie em zoologia e em botânica, por exemplo. Em zoologia o facto de dois indivíduos poderem ter descendentes férteis implica que pertencem à mesma espécie. Em botânica não: existem plantas classificadas em espécies diferentes que podem cruzar-se entre si, produzindo descendência não-estéril. Além disso, Gould, como muita gente de esquerda, parecia confundir igualdade perante a lei ou igualdade de dignidade e direitos, com igualdade de facto. A negação a priori das diferenças entre raças e sexos é ideológica e profundamente anti-científica. Num ponto lhes dou razão, no entanto. Estudos científicos que alguma vez viessem a demonstrar diferenças entre raças humanas, por pequenas que fossem, viriam inevitavelmente a ser usadas por muita gente para justificar tratamentos discriminatórios. O que não creio é que a negação da ciência e da verdade seja a solução para este possível problema.

Mas a verdade é que a ciência e a verdade não sofrem apenas o ataque da esquerda pós-modernista. Alguma direita religiosa, especialmente nos EUA, mantém uma longa guerra com a teoria da evolução das espécies de Darwin (criticada pelo próprio Stephen Jay Gould): o criacionismo. A última versão do criacionismo, e talvez a mais inteligente surgida até hoje, é a da Concepção Inteligente, que mantém que as características dos seres vivos são tais que revelam inevitavelmente que uma inteligência os concebeu, tal como o mecanismo de um relógio revela a inteligência que o desenhou.

Não há dúvida. A ideologia é avessa à ciência e à verdade.

P.S. Steven Pinker escreveu um artigo sobre o mesmo assunto no último número da Skeptical Inquirer, revista que recomendo a todos os amantes da ciência.
Vicente Jorge Silva tem alguma razão quando diz que não existe coerência e consistência editorial no Público, mas apenas no sentido em que o posicionamento ideológico dos seus directores está muito longe de ser uniforme. Não tem razão porque do ponto de vista estritamente jornalistico não parece existir falta de coerência no Público, que apesar dos seus defeitos é um bom jornal. Também não tem razão quando diz que a falta de coerência (ideológica) existente na direcção é um problema. Não é um problema nem um defeito: é uma característica do Público que acho até muito interessante. Um jornal com uma direcção incoerente ideologicamente tem alguma dificuldade em tomar posição relativamente à guerra no Iraque, é verdade, mas sinceramente não vejo isso como um problema, tal como não vejo nenhum problema no alinhamento crítico d'O Independente com a firmeza da administração americana em relação ao Iraque.
Em Portugal, se exceptuarmos talvez o Independente, as redacções dos jornais de referência são tradicionalmente de esquerda. É o caso, por exemplo, do Público, onde as posições liberais de José Manuel Fernandes equilibram a balança ideológica do jornal. As redacções estão presas pela obrigação de apresentar factos e não opinões. Por vezes isso não acontece, deixando alguns artigos transparecer claramente a opinião dos jornalistas. Ainda assim, é provavelmente verdade que as redacções se sentem constrangidas, pelo que os cartoons acabam por servir de escapatória. De facto, é interessante como eles revelam claramente (e acredito que involuntariamente) o que as redacções dos jornais pensam. Veja-se o caso do Bartoon no Público e do Cravo & Ferradura, no Diário de Notícias. No Bartoon do Público de ontem, por exemplo, um soldado americano de pala no olho conversa com o empregado de balcão, que lê o jornal: "'Segundo Bush, a intervenção militar no Iraque visa criar um mundo mais pacífico. Um mundo mais pacífico?' 'Sim, mas sem exageros'". No Cravo e Ferradura do Diário de Notícias de 14 de Março, um empregado dos correios franceses comenta com um colega a presença da estátua da liberdade, deitada no chão, frente ao edifício dos correios: "Jacques, temos uma devolução". Note-se que admiro o humor de ambos os autores (Luís e Bandeira). O seu alinhamento com a esquerda é apenas a constatação de um facto.
Dizem muitos analistas que Bush conseguiu dividir a Europa. Disse-o, por exemplo, Miguel Sousa Tavares à TVI. É falso. O que é verdade é que a posição da administração Bush relativamente ao Iraque obrigou a uma separação mais clara de águas que estavam já separadas na Europa. As divisões europeios existiam já, esperando apenas por uma crise séria para se revelarem em todo o seu esplendor. Essa crise surgiu e as divisões revelaram-se. Ainda bem: é preferível discutir-se a união europeia e as suas instituições com todas as divisões existentes em cima da mesa e não convenientemente escondidas debaixo do tapete.

Será que esta crise representa o fim da UE, como alguns dizem? É possível, mas espero sinceramente que não. Terá talvez como efeito uma travagem no processo, mas creio que a longo prazo uma verdadeira união europeia existirá. Uma das discussões que terá de ser feita será a da posição dessa nova europa face aos EUA. Ficará claro que a união europeia só avançará com os EUA e nunca contra eles. O Reino Unido, Espanha, Portugal e muitos países de leste encarregar-se-ão de o garantir.
As minhas desculpas a quem se habituou a ler o Picuinhices e o encontrou inactivo durante quase um mês. Razões pessoais e profissionais levaram a que assim tivesse que ser. Tentarei manter o blog com um mínimo de actividade nos próximos tempos.
João Paulo Guerra igual a ele próprio Há gente que não muda, que é perfeitamente coerente na asneira. Um exemplo acabado é João Paulo Guerra. Na sua coluna do Diário Económico refere-se a George W. Bush como George 'bin' Bush. Já sabíamos que para João Paulo Guerra não havia qualquer diferença entre Bush e bin Laden. As suas crónicas após o 11 de Setembro já o deixavam bem claro. Diz ele que é o governo português diz sim à posição americana "porque dizer sim não faz doer a cabeça". Pois é. Pelos vistos o que faz doer a cabeça a João Paulo Guerra é pensar. Por isso evita fazê-lo.

2003-03-22

Carlos

O que eu dava para voltar ao passado. Para voltar a ser adolescente, em casa de meus pais. Para ouvir o Carlos bater à porta. Vinha partilhar livros, revistas, histórias. Vinha partilhar a sua enorme cultura. Era um homem tímido. Era um homem bom. Bebia e fumava como quem não teme o vício.

Há muito já que saí de casa de meus pais. O Carlos já não era meu vizinho. Mas continuava a sê-lo, no coração e na memória. E continuará a sê-lo. O Carlos morreu. Perdi um vizinho. Perdemos um vizinho. Perdemos o nosso vizinho.

2003-03-19

Manuel Bandeira

Chama e fumo

Amor – chama, e, depois, fumaça...
Medita no que vais fazer:
O fumo vem, a chama passa...

Gozo cruel, ventura escassa,
Dono do meu e do teu ser,
Amor – chama, e, depois, fumaça...

Tanto ele queima! e, por desgraça,
Queimando o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...

Paixão puríssima ou devassa,
Triste ou feliz, pena ou prazer,
Amor – chama, e, depois, fumaça...

A cada par que a aurora enlaça,
Como é pungente o entardecer!
O fumo vem, a chama passa...

Antes, todo ele é gosto e graça.
Amor, fogueira linda a arder!
Amor – chama, e, depois, fumaça...

Porquanto, mal se satisfaça,
(Como te poderei dizer?...)
O fumo vem, a chama passa...

A chama queima. O fumo embaça.
Tão triste que é! Mas, tem de ser...

Amor?... – chama, e, depois, fumaça:
O fumo vem, a chama passa...

Teresópolis, 1911.

2003-03-04

Dislates de borla Na sua coluna de opinião em o "Público" Eduardo Prado Coelho escreve:
Uma das frases que se tornou num verdadeiro manifesto do espírito económico é aquela que diz que não há almoços grátis. O "homo economicus" organiza-se todo ele em torno deste princípio: nada há que se faça na vida sem uma ideia de algo a ganhar com aquilo que se fez.

Vindo de quem vem não surpreende, mas esclarece. Esta é a visão do "espírito económico" ou melhor da falta deste, que uma certa esquerda, com ares de bonomia, aplica à gestão da "coisa pública".

A interpretação que uma certa direita, liberal e inspirada pelo pensamento ético calvinista, faz é que nada há que se utilize e/ou consuma que não tenha um custo associado. E tendo um custo, existem escolhas a fazer; às quais os princípios éticos não podem ser alheios. Com maior gravidade quando a coisa é publica.

Ou se calhar, todos estes cuidados e zelos mais não são que picuinhices.
Mais um divertido blogue (como eles dizem) na blogosfera (como diz A Coluna Infame): O Blogue dos Marretas. Para variar, não é esquerdista. Bem vindos ao clube!
Dreaming of Democracy de George Packer, é um artigo muito interessante e crítico acerca da oposição iraquiana no exílio e a intenção de democratizar o Iraque da administração americana. O artigo centra-se na figura de Kanan Makiya, um dissidente iraquiano, autor de "Republic of Fear", e um lutador pela libertação e democratização do Iraque.
The Left's unholy alliance with religious bigotry, de Nick Cohen, no Guardian de ontem. Um pequeno extracto:

What is the Left offering Iraq? It has no strategy other than the continuation of a brutal status quo. It can't support the Iraqi democrats because they say Saddam can only be overthrown by violence.

It can't support the Iraqi Kurds because they agree. It has been reduced to allying with religious bigots, the deadliest enemy of those best and brightest Muslims who offer that rare commodity in the Islamic world, hope.

Confesso que não esperava encontrar prosa tão certeira no Guardian... Devo estar a ficar preconceituoso.
OPEP alvo dos EUA, segundo Boaventura Sousa Santos A sério? Pensava que era evidente que os EUA, como país liberal, eram contra os cartéis. Será Boaventura Sousa Santos a favor? Provavelmente. Liberalizar é uma palavra que causa alergia aos arautos da "globalização alternativa" (leia-se: colectivismo mascarado). Por mim, sou claramente contra todos os cartéis, OPEP incluída.

(As afirmações desta e das anteriores entradas foram retiradas do artigo As perguntas incómodas de Freitas do Amaral, no Público de hoje.)
Alguns patrões usam a guerra como desculpa para mais despedimentos. O Arts and Letters Daily, que recomento, inclui entre as suas ligações o hilariante Postmodern Generator. Seria interessante desenvolver um Gerador Carvalho da Silva. Aposto que era fácil produzir um programa de computador capaz de gerar discursos menos repetitivos e previsíveis que Carvalho da Silva. E seguramente mais interessantes.
A nossa extraordinária Maria de Lurdes Pintassilgo (MLP) pergunta-se (durante a famigerada sessão contra a guerra na Aula Magna) se "será legítimo, por exemplo, que membros da Administração Bush andem a correr mundo, a contactar presidentes de países paupérrimos? [...] Esses países fazem parte do Conselho de Segurança e tudo é permitido para comprar o seu voto". Os EUA numa atitude multi-lateral, em contactos diplomáticos? Com países pobres, ainda por cima? Não deveria ser permitido, como é evidente. Talvez devêssemos mudar a carta das Nações Unidas para proibir esse tipo de contactos perversos entre ricos e pobres. A riqueza corrompe, parece ser a tese de MLP. Esses "países paupérrimos" não merecem qualquer consideração por parte de MLP. Segundo ela, não só é evidente que os EUA os tentarão comprar, como é inevitável que os países pobres se deixem corromper...
Tem sido habitual ultimamente os opositores da guerra declarem-se contra a administração Bush, mas aliados "do povo americano, das elites americanas, das universidades americanas", como afirmou Mário Soares no encontro contra a guerra da Aula Magna. Curiosamente, poucas, muito poucas destas declarações de "pró-americanismo" incluem a tradição democrática e liberal americana. A razão é evidente: quem o afirma são os mesmos que aproveitaram os problemas legais surgidos durante as últimas presidenciais nos EUA para acusar o sistema americano de "imperfeito" ou "deficiente". São os mesmos que, como Fernando dos Santos Neves no Público de hoje, acham que "a América de Bush [se situaria] no rol dos países párias e terroristas por excelência". Claramente, nos EUA não há um sistema perfeito. É verdade que os EUA têm a sua dose de asneiras em política externa. Mas muito mais interessante do que constatá-lo seria fazer um momento de autocrítica. Sendo um sistema imperfeito, será que, na sua globalidade, é pior que o português? Ou que o Francês? Haverá sistemas perfeitos? Haverá países sem erros no seu passado? Cômputo geral, as acções americanas no mundo ao longo do século passado foram positivas ou negativas? Mas este exercício é impossível de fazer... Poucos dos que fazem as acusações viram a queda do bloco soviético como uma vitória da democracia e da liberdade. E menos ainda reconheceram o papel imprescindível que os EUA tiverem nessa queda. Perante tais descolagens da realidade, são inúteis os argumentos.
"Será que já estamos amordaçados? Será que já somos países satélite?" Perguntas de Freitas do Amaral, no encontro da Sábado na Aula Magna. Como tem sido habitual ultimamente, Freitas do Amaral está enganado. Que ele não está amordaçado, é evidente, pois a sua opinião tem-se ouvido com insistência. Todos agradecíamos se a discussão acerca do Iraque se fizesse com um mínimo de razoabilidade. Somos um país satélite? A avaliar pelas palavras de Ana Gomes, sim, mas satélite do Wall Street Journal, pelos vistos, que segundo Ana Gomes terá "estado por trás" da carta dos oito. Aliás, pelos vistos também o Reino Unido é satélite desse jornal... Mas Ana Gomes disse mais. Disse que terão existido razões obscuras para a preferência do ministro da defesa por aviões da Lockheed-Martin em detrimento da Airbus. As acusações são extremamente graves. Esperemos que o ministro ponha tudo em pratos limpos e exija explicações a Ana Gomes.

2003-03-02

Acerca da Coreia do Norte, é interessante verificar como as posições da administração dos EUA são criticadas pelos próprios conservadores. Joshua Muravchik, de que já aqui referi o livro "Heaven on Earth: The Rise and Fall of Socialism", do American Enterprise Institute, escreve na revista Commentary um artigo interessante: Facing Up to North Korea. Nele ataca as políticas que têm sido seguidas em relação à Coreia do Norte, que acusa de terem contribuído para a situação actual, em que um ditador tem aparentemente o caminho livre para se armar de uma forma assustadora. Diz ele, como conclusão do artigo, que

When there are no longer powerful men like these [Saddam, Kim Yong Il e bin Laden], then we may truly begin to speak of the end of history. Until then, the preservation of all we hold dear will require unillusioned clarity, vigilance, courage—and, it is to be feared, sacrifice.
Uma das críticas mais frequentes à posição dos EUA sobre o Iraque e as inspecções das Nações Unidas é a de que o ónus da prova não pode recair sobre o Iraque, pois não se pode demonstrar a não-posse do que quer que seja. O argumento parece válido, à primeira vista, mas esquece que toda e qualquer destruição de armamento exige documentação e testemunhas. A esse propósito é elucidativo ler o rascunho do relatório de Hans Blix datado de 23 de Fevereiro:

The Iraqui Commission established to search for and present any proscribed items is potentially a machanism of importance. It should, indeed, do the job that inspectors should not have to do, namely, tracing any remaining stock or store of proscribed items anywhere in Iraq. [...]

Claro como água: sem a colaboração Iraquiana, nada feito. Daí a insistência dos EUA na cooperação do Iraque,
Na revista Commentary de Dezembro, David Berlinski, um opositor do darwinismo, faz um ataque feroz à versão mais inteligente do criacionismo que surgiu até hoje: a teoria do do desenho ou concepção inteligente (intelligent design). O artigo é muito interessante, e desencadeou uma forte polémica. Correndo o risco de parecer que quero reduzir o artigo todo a uma frase, que não é de todo representativa, não resisto a uma citação:

Faith in a designed universe might well be rather like faith in a planned economy, a doctrinal commitment that cannot survive a confrontation with experience.
A Virtude do Ódio Terrível artigo de Meir Y. Soloveichik, na First Things, sobre a virtude do ódio e a diferença entre cristãos e judeus no que diz respeito ao perdão. Cito apenas o final do artigo:

But one thing is certain: we will not soon forgive the actions of a man who, as he sent children to kill children, knew—all too well—just what he was doing. We will not—we cannot—ask God to have mercy upon him. Those Israeli parents whose boys and girls did not come home will pray for the destiny of his soul at the conclusion of their holiest day, but their prayer will be rather different from the rosary:

Let the terrorist die unshriven.

Let him go to hell.

Sooner a fly to God than he.


Apesar de agnóstico, não podia concordar mais.

2003-03-01

Uma edição especial da bela revista "O Egoísta", com o título "Portugal: Pensar o Futuro", acabou de sair para as bancas. 25 € é muito dinheiro por uma revista. Mas não resisti. Afinal, não é todos os dias que se pode ler textos mono-temáticos de tantas personalidades portuguesas numa única publicação. Infelizmente, o resultado é medíocre.

O editorial é pomposo e vazio, com as suas repetidas referências à psicanálise a que os portugueses se deveriam submeter. D. José Policarpo enche uma página de lugares comuns e vazio de real informação. Mário Soares é igual a si próprio. Começa bem, mas termina com as suas já habituais diatribes anti-americanas. Desta vez, pelo menos, não sugere nenhuma conspiração americana por trás do 11 de Setembro. Menos mal, nesse ponto, mas vejamos outros:

A enigmática China, que começa a sentir-se cercada pelos Estado Unidos, não ficará tão silenciosa como até aqui, sobretudo se as fanfarronadas do Secretário americano para a Defesa, Donald Rumsfeld, contra a Coreia do Norte, viessem a concretizar-se.

Infelizmente a minha memória é curta, mas não terei eu ouvido ou lido algures o próprio Mário Soares sugerir que, para serem corerentes com o que fazem no Iraque, os EUA não deveriam estar a propor soluções diplomáticas para a Coreia do Norte? Talvez não tenha dito. Mas o efeito é o mesmo. A nossa esquerda não sabe o que quer. Ou melhor, sabe. Atacar os EUA em quaisquer circunstâncias. O que quer que os EUA façam. Um pouco à frente, Mário Soares refere-se a Lula:

[...] no outro extremo do mundo, o nosso irmão Brasil, com Lula, se o cerco que lhe fizerem não for excessivo, poderá vir a dar-nos algumas boas surpresas.

O interessante é que não é a primeira vez que os defensores de Lula, antecipando o seu futuro fracasso, apresentam desde já uma explicação para ele: o "cerco" capitalista, "a conspiração" americana, "as forças sinistras da direita religiosa americana". Lula não será nunca responsável por nada, obviamente.

Mais à frente, depois de uma sequência de palavras alinhadas atrás de palavras num completo desperdício de tinta, da autoria do nosso Primeiro Ministro, José Manuel Durão Barroso, temos direito a mais um pedaço de prosa dessa figura incontornável da asneira lusitana: Maria de Lurdes Pintassilgo. Diz ela que "a ignorância é a mais grave disfunção do mundo político". Presume-se que se exclui desse mundo, mas faz mal. Veja-se, por exemplo, esta brilhante incursão na física, com os mesmos resultados lamentáveis que Alan Sokal desmontou no seu genial "Imposturas Intelectuais":

Hoje é certo que nada se pode prever -- a imprevisibilidade é uma lei geral da Física que se estende a todos os domínios.

A senhora é engenheira, não o esqueçamos. Deve, por isso, ter boas bases para esta nova teoria. Aliás, sendo já lei, presume-se que a teoria tenha já sustentação empírica. Talvez tenha sido comprovada por uma vida inteira de previsões falhadas, quem sabe... Enfim, proponho que esta nova Lei da Física receba o nome da sua autora. Enunciemos, pois, a lei Pintassílgo: "tudo é imprevisível". Deve ser terrível deitar-se sem saber se o Sol se levantará no dia seguinte à hora prev..., perdão, adivinhada pelos astrónomos.

Depois vem o texto de Adriano Moreira. Sinceramente, admito que o senhor seja de facto uma sumidade em relações internacionais. Mas será que lhe custava muito escrever de uma forma clara e directa? Não há texto de Adriano Moreira que não seja denso e retorcido. Não, não são as ideias que são complicadas: é mesmo a forma. Não compreendo o que se ganha com isso.

E a coisa continua... Depois comentarei os restantes textos, se é que alguma vez terei paciência para os ler todos.
Bloco de Esquerda: Recauchutagem do trotskismo Carlos Jalali, da Universidade de Oxford, referindo-se ao Bloco de Esquerda na apresentação de um livro com os resultados do primeiro inquérito pós-eleitoral realizado em Portugal: "[o Bloco de Esquerda revela-se] um caso único de recauchutagem [uma] mistura de valores pós-materialistas com trotskismo". No Público de hoje.
Um pesadelo africano Manuel Villaverde Cabral, em 'Um Sonho Africano' no DN de hoje, defende o papel importante de Savimbi em Angola, na luta contra o totalitarismo comunista do MPLA. Concordo. Mas concordo apenas até às eleições de 1992. Estas eleições, ao contrário do que Villaverde Cabral diz, foram no essencial justas, tal como os observadores internacionais confirmaram na altura. Savimbi não aceitou as eleições (cujo resultado também não me agradou). O MPLA reagiu com uma violência inaudita e criminosa. A verdade, porém, é que a partir dessa data Savimbi se tornou num carrasco para a população angolana. Ao lado da sua intransigência guerreira, a corrupção grosseira e o regime lamentável do MPLA ficava a ganhar. A morte de Savimbi foi a melhor notícia do ano passado para Angola e os angolanos. Claro que agora, sem Savimbi ao lado, o regime do MPLA já não ganha por comparação com um inimigo bem pior. As características desse regime, com origens socialistas, revelam-se em todo o seu explendor. No entanto, julgo que Angola tem futuro. Espero que Angola se democratize depressa: os angolanos merecem sair de um longo pesadelo. Que o fantasme de Savimbi não os atormente.
Na Coluna Infame, Pedro Mexia escreve:

O TEMPO PASSA (II): Lembro-me: há dez anos ouvi um tipo meio lunático (mas muito talentoso) dizer que havia um sistema de pôr em rede todos os computadores, de criar correio electrónico e de aceder a um fluxo infinito de informação, e que em breve isso seria o nosso dia-a-dia, mais imprescindível do que a televisão. Na altura achei que ele tinha esvaziado o Johnny Walker. Foi há dez anos.

Há 10 anos, estava eu num laboratório do IST, quando alguém se aproximou de mim e me disse que tinha de ver uma coisa fabulosa que tinha sido inventada no CERN e no NCSA: a World Wide Web e um programa chamado Mosaic. Foi um passo de gigante, de facto. Em poucos minutos tinha o mundo disponível no meu computador. No entanto, nessa altura já usava o correio electrónico há vários anos, pelo menos desde 1986. Já partilhava ficheiros usando FTP, o Archie de boa memória, etc. Parece-me que há um pequeno erro de perspectiva na observação de Pedro Mexia. A Web foi um enorme salto, mas sustentou-se numa experiência de anos de interligação e partilha electrónica no meio académico, embora em Portugal fosse essencialmente no meio académico científico e tecnológico.