2003-08-04

Até breve Vou de férias e só volto no final de Agosto. Até lá pode ser que consiga aqui voltar de vez em quando, mas é pouco provável. Entretanto, recomendo que sigam as ligações do lado direito desta página. Boas leituras!

2003-08-02

Público ou Privado e Colectivo ou Individual O MATA-MOUROS escreve sobre o automóvel e a cidade. Concordo essencialmente com o que diz. Acrescento, no entanto, duas observações. A primeira é a de que o simples aumento do preço do estacionamento e a sua cobrança efectiva poderiam ir servindo de dissuasores enquanto não se implementam portagens de acesso ao centro da cidade. A segunda é que convém distinguir claramente entre as opções de transporte público ou privado e colectivo ou individual.

Os transportes colectivos, públicos ou privados, sendo excelentes para determinados tipos de viagens e clientes, são muitas vezes demasiado rígidos. É quase impossível, por exemplo, imaginar uma rede de metro suficientemente densa para ninguém precisasse de andar mais do que cinco minutos a pé nem de mudar de linha mais do que uma vez. Dir-me-ão que exagero nos cinco minutos, que andar a pé faz bem. É verdade. Mas também é verdade que há muita gente que pura e simplesmente não pode andar tanto a pé, tais como idosos, deficientes, etc., e que há condições meteorológicas sob as quais andar cinco minutos a pé é um suplício. Quem andou hoje por Lisboa sabe a que me refiro. Por outro lado, há muita gente que precisa de se deslocar ao longo de percursos que não permitem uma utilização minimamente confortável dos transportes colectivos. Ou seja, o transporte individual contribui para a liberdade e a qualidade de vida do cidadão, embora, sendo privado, incentive os cidadãos a abusarem dele. De facto, se tenho carro, para que vou de metro?

A questão, julgo eu, está na associação errada que fazemos entre individual e privado: um transporte individual não é necessariamente privado. As Bugas em Aveiro e as Bicas em Cascais são os primeiros exemplos de transporte individual e público. É verdade que é necessário dar aos pedais. Mas creio que o futuro virá a demonstrar que a ideia dos automóveis públicos, pagos através de um cartão de utilizador ou outro método qualquer, tem pernas, ou rodas, para andar.
Muro Sem Vergonha De repente, Nuno Ramos de Almeida é um nome que se cruza no meu caminho. Critiquei-lhe um artigo na revista Manifesto no início de Julho. Encontrei "O Passeio dos Blogues", um seu texto certeiro e hilariante no Metablogue. Recebi uma mensagem dele acerca da minha entrada O Santo Ofício, em termos elogiosos que muito me orgulharam e que agradeço. Finalmente, descobri o blogue Muro Sem Vergonha, que mantém com José Neves, cujos textos também já critiquei, e com Luís Moura. Um blogue a prometer muita polémica, certamente. Foi aí, no Muro Sem Vergonha, que encontrei a entrada completa sobre O Passeio dos Blogues. No seu final, Nuno Ramos de Almeida escreve:
Nestas manobras conseguem-se as alquimias mais incríveis. No outro dia um esperto "conseguiu" demonstrar que a maior parte da população dos Estados Unidos da América participa nas eleições. No meio da aritmética criativa esqueceu-se de assinalar que grande parte da população não está sequer recenseada.
Fui um dos que desmontou as afirmações que se vêem fazendo acerca das eleições nos EUA. A minha entrada chamava-se As Contas de Ralf Dahrendorf. Nela calculei, com base em dados oficiais, que nas últimas eleições nos EUA votaram 51,3% dos cidadãos em idade de votar, recenseados ou não. Acontece que 51,3%, não sendo um número nada animador, ainda é "a maior parte da população". Ter-me-ei enganado em alguma conta? Se sim, façam o favor de me dizer onde.
Delírios sobre a Terra e o Sol

Calor. Hoje invejo todos os animais com habitações subterrâneas. Invejo os coelhos. Invejo as toupeiras. A Terra, à superfície, traiu-me. Só nas profundezas mantém a sua eterna frescura. A crosta terrestre ferve. Os mosaicos e os mármores, perversos, aquecem os pés que prometiam arrefecer. Os tubos metálicos da cadeira não se sentem. Negam-se a transmitir aquele arrepio agradável que nunca recusaram até hoje. Os braços, sobre a madeira quente da secretária, deslizam sobre uma camada de suor. Toda a roupa abafa, queima, sufoca. Tirá-la é uma obrigação. Tirá-la é uma desilusão: o ar quente envolve a pele, antes protegida pelo tecido, e parece aquecê-la mais.

A entrada do prédio mantém a sua frescura virginal. Que me impede de lá dormir? Estúpido pudor. A clarabóia, no alto, liberta o ar quente para os céus. A Terra, em baixo, transmite lentamente a sua frescura aos únicos mármores que se me mantêm fieis. Todos os esforços para repelir o Sol, o repelente Sol, que tantos adoram, falharam. "Hoje está bom tempo", dizem, insensíveis criminosos arraçados de lagartos. Tenham dó de um nórdico desterrado! De um amante do vento forte, sobre um mar gelado! Do gelo. Das montanhas.

Saímos do cinema à meia-noite. O ar quente atingiu-nos, violento. O Sheraton ali tão perto... os seus ares condicionados cantavam qual sereias. Porque não me deixei encantar?

2003-08-01

O Santo Ofício Numa Aula Magna criminosamente quente, decorreu ontem à noite a mesa redonda Science and its critics. Confesso que já antes de entrar me admirei com a coragem demonstrada por Boaventura Sousa Santos ao dispor-se a enfrentar um painel que lhe era claramente hostil, com a possível excepção de Desidério Murcho, e uma assistência que seria inevitavelmente dominada por físicos e matemáticos. Terminada a sessão, a minha admiração pela coragem, que não pelas ideias, de BSS aumentou: aguentou o embate, respondeu com inteligência, mesmo quando para se esquivar, e não respondeu a provocações.

A desproporção de forças e alguns ataques menos elegantes transformaram o debate, pelo menos em parte, numa espécie de tribunal do Santo Ofício onde BSS era acusado de ter escrito um livro herético. O livro é "Um discurso sobre as ciências", editado pela Afrontamento em 1987, em 12ª edição, pelo menos.

O debate foi aberto por Alan Sokal, que foi frontal e contundente, sem nunca ser deselegante. Afirmou que o livro de BSS era "misguided from beginning to end" e que não tinha análise, consistindo simplesmente numa (longa) asserção. Propôs que se debatesse se o objectivo da ciência era, como ele crê, usar "rational methods to distinguish true propositions from false propositions".

BSS respondeu dizendo que o livro tinha 17 anos, que as citações dele extraídas careciam de contexto, e que os ataques eram feitos ad hominem. Sugeriu depois alguns temas para o debate, numa tentativa clara de o desviar para o campo ideológico, em que se sente mais à vontade. Segundo ele, uma das perguntas mais importantes a que há que responder é o que fazer com o conhecimento, pois está-se a criar uma sociedade de mercado, para além de uma economia de mercado, que é moralmente repugnante e pode levar a conhecimento imprudente. Ainda segundo BSS, num mundo onde cada vez mais a violência impera, cometem-se não apenas genocídios mas também "epistemicídios", pois se descartam corpos de conhecimento importantes em nome da superioridade do conhecimento científico ocidental. Afirmou apoiar o relativismo cultural, presumo que enquanto sociólogo, e ser opositor do relativismo. Disse ainda não ser subjectivista, até porque isso seria incompatível com o seu "marxist training".

As intervenções de Nuno Crato caracterizaram-se por uma violência e raiva que só seria excedida pela intervenção bastante patética de António Manuel Baptista, que felizmente não fazia parte do painel. Desafiou BSS a declarar preto no branco que partes do seu livro considera hoje certas ou erradas, uma vez que o livro é muito usado nas universidades portuguesas. Referiu ainda que a utilização do teorema de Gödel feita por BSS estava errada, pois este teorema não demonstra de forma alguma que até a matemática é incerta, mas sim que, num sistema formal, há proposições verdadeiras que não se consegue demonstrar dentro desse mesmo sistema.

Desidério Murcho alinhou intelectualmente com os opositores das ideias de BSS, mas revelou enorme contenção e capacidade de estabelecer um diálogo franco. Demonstrou ser alguém com quem podemos contar para debates sérios sobre filosofia. Como a palavra "ciência" tem vários sentidos, propôs que se usasse o sentido mais lato de "rational search for truth". Disse ainda que os critérios de verdade são universais, não havendo critérios científicos diferentes de critérios religiosos, ou de outra qualquer esfera do pensamento.

Jean Bricmont foi o melhor dos painelistas. Argumentou sempre com elevação e evitou todos os ataques ad hominem, centrando-se nas ideias. Perante a afirmação de Sokal de que a ciência era ensinada como um catecismo (todos acreditam que a matéria é constituida por átomos mas pouquíssimos conseguem apresentar alguma prova), argumentou que é inevitável que todos acreditemos em algumas coisas com base em simples argumentos de autoridade, pois se não há esperança de tudo saber, muito menos há de saber justificar todo o conhecimento que se tem.

João Caraça, o moderador, fez o que pôde para manter a balança do debate minimamente equilibrada, mas acabou por ser muito mais verboso que substancial. De positivo fica o ter reforçado a ideia de Nuno Crato de repetir debates sobre a natureza da ciência com uma composição do painel mais equilibrada.

Concluindo, foi um debate por um lado frustrante e pouco edificante, mas por outro estimulante. A demonstrá-lo está o ter ficado em acesa discussão, à porta da aula magna, até à uma hora da manhã.

(Faço esta breve e muito incompleta descrição de memória e com base em algumas notas esparsas. Quem a ler deve-lhe pôr um grão de sal, pois pode bem acontecer que tenha percebido mal alguma das intervenções ou que a memória me atraiçoe. Aliás, aceitam-se correcções, como sempre.)
Falta de Chá Eduardo Prado Coelho, com as férias a aproximar-se e pouco para se dizer, escreve sobre chá no Público. Diz ele que "o chá verde resulta da primeira fase de desidratação da planta, enquanto o chá preto tem a sua origem em folhas ressequidas que um forno aquece". Como descrição do processo de produção do chá preto, deixa alguma coisa a desejar. O forno é usado apenas para secar o chá já fermentado, correspondendo ao passo final do processo, sendo a fermentação o passo onde o chá preto ganha as características que o distinguem do chá verde, tais como a cor e o aroma.

[A despropósito, segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, a palavra "chá" tem origem no mandarim e no cantonês, enquanto, segundo o Merriam-Webster, a palavra inglesa "tea" tem origem no dialecto de Xiamen, tal como as palavras "thé" (francesa) e "té" (espanhola).]