2003-08-01

O Santo Ofício Numa Aula Magna criminosamente quente, decorreu ontem à noite a mesa redonda Science and its critics. Confesso que já antes de entrar me admirei com a coragem demonstrada por Boaventura Sousa Santos ao dispor-se a enfrentar um painel que lhe era claramente hostil, com a possível excepção de Desidério Murcho, e uma assistência que seria inevitavelmente dominada por físicos e matemáticos. Terminada a sessão, a minha admiração pela coragem, que não pelas ideias, de BSS aumentou: aguentou o embate, respondeu com inteligência, mesmo quando para se esquivar, e não respondeu a provocações.

A desproporção de forças e alguns ataques menos elegantes transformaram o debate, pelo menos em parte, numa espécie de tribunal do Santo Ofício onde BSS era acusado de ter escrito um livro herético. O livro é "Um discurso sobre as ciências", editado pela Afrontamento em 1987, em 12ª edição, pelo menos.

O debate foi aberto por Alan Sokal, que foi frontal e contundente, sem nunca ser deselegante. Afirmou que o livro de BSS era "misguided from beginning to end" e que não tinha análise, consistindo simplesmente numa (longa) asserção. Propôs que se debatesse se o objectivo da ciência era, como ele crê, usar "rational methods to distinguish true propositions from false propositions".

BSS respondeu dizendo que o livro tinha 17 anos, que as citações dele extraídas careciam de contexto, e que os ataques eram feitos ad hominem. Sugeriu depois alguns temas para o debate, numa tentativa clara de o desviar para o campo ideológico, em que se sente mais à vontade. Segundo ele, uma das perguntas mais importantes a que há que responder é o que fazer com o conhecimento, pois está-se a criar uma sociedade de mercado, para além de uma economia de mercado, que é moralmente repugnante e pode levar a conhecimento imprudente. Ainda segundo BSS, num mundo onde cada vez mais a violência impera, cometem-se não apenas genocídios mas também "epistemicídios", pois se descartam corpos de conhecimento importantes em nome da superioridade do conhecimento científico ocidental. Afirmou apoiar o relativismo cultural, presumo que enquanto sociólogo, e ser opositor do relativismo. Disse ainda não ser subjectivista, até porque isso seria incompatível com o seu "marxist training".

As intervenções de Nuno Crato caracterizaram-se por uma violência e raiva que só seria excedida pela intervenção bastante patética de António Manuel Baptista, que felizmente não fazia parte do painel. Desafiou BSS a declarar preto no branco que partes do seu livro considera hoje certas ou erradas, uma vez que o livro é muito usado nas universidades portuguesas. Referiu ainda que a utilização do teorema de Gödel feita por BSS estava errada, pois este teorema não demonstra de forma alguma que até a matemática é incerta, mas sim que, num sistema formal, há proposições verdadeiras que não se consegue demonstrar dentro desse mesmo sistema.

Desidério Murcho alinhou intelectualmente com os opositores das ideias de BSS, mas revelou enorme contenção e capacidade de estabelecer um diálogo franco. Demonstrou ser alguém com quem podemos contar para debates sérios sobre filosofia. Como a palavra "ciência" tem vários sentidos, propôs que se usasse o sentido mais lato de "rational search for truth". Disse ainda que os critérios de verdade são universais, não havendo critérios científicos diferentes de critérios religiosos, ou de outra qualquer esfera do pensamento.

Jean Bricmont foi o melhor dos painelistas. Argumentou sempre com elevação e evitou todos os ataques ad hominem, centrando-se nas ideias. Perante a afirmação de Sokal de que a ciência era ensinada como um catecismo (todos acreditam que a matéria é constituida por átomos mas pouquíssimos conseguem apresentar alguma prova), argumentou que é inevitável que todos acreditemos em algumas coisas com base em simples argumentos de autoridade, pois se não há esperança de tudo saber, muito menos há de saber justificar todo o conhecimento que se tem.

João Caraça, o moderador, fez o que pôde para manter a balança do debate minimamente equilibrada, mas acabou por ser muito mais verboso que substancial. De positivo fica o ter reforçado a ideia de Nuno Crato de repetir debates sobre a natureza da ciência com uma composição do painel mais equilibrada.

Concluindo, foi um debate por um lado frustrante e pouco edificante, mas por outro estimulante. A demonstrá-lo está o ter ficado em acesa discussão, à porta da aula magna, até à uma hora da manhã.

(Faço esta breve e muito incompleta descrição de memória e com base em algumas notas esparsas. Quem a ler deve-lhe pôr um grão de sal, pois pode bem acontecer que tenha percebido mal alguma das intervenções ou que a memória me atraiçoe. Aliás, aceitam-se correcções, como sempre.)

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