2003-09-22

Lucidez Árabe Mais uma vez com origem no MEMRI, um excelente texto sobre a educação no mundo Árabe. Um excerto:
Who are we? Are we the best nation that [Allah] produced for man, or the last in line among the nations? And why?

The religious media and education provide an easy answer: Since we have given up our religion, Allah has given us up. Therefore, let us set out on a campaign of return to Allah; let us return to the Golden Age riding on a belt of explosives - and the first thing it will blow up will be our hopes for a better future...

2003-09-19

Cuba Livre! A autoridade de quem esteve do outro lado da cortina de ferro revela-se num manifesto pela democracia em Cuba e pelo apoio aos dissidentes cubanos. Obrigatório ler.

P.S. Na tradução portuguesa do artigo, as sanções norte-americanas a Cuba são apresentadas primeiro como um embargo, o que é correcto, e depois como um bloqueio, que é o termo errado normalmente usado pelos amigos ou cripto-amigos do regime de Fidel. Teria sido erro dos autores? A versão francesa no Le Monde usa das duas vezes a palavra embargo. Infelizmente não encontrei a versão original, em inglês, mas desconfio fortemente de um lapsus calami do tradutor para português.
O oito de Eduardo Prado Coelho O Fio do Horizonte, de Eduardo Prado Coelho, é um exercício admirável de regularidade. Mas é também um exercício arriscado. Hoje, por exemplo, EPC escreve sobre as posições extremadas relativamente aos incêndios. Cita, como exemplo da "tese dos oitenta", um texto de Vasco Graça Moura onde este disse existir "uma espécie de terrorismo apostado em destruir, degradar, instabilizar estruturas agrárias ou florestais, residências, bens e haveres de gente que, muitas vezes, nada mais tem de seu, e também em atingir, tanto directa como indirectamente, a economia portuguesa". Até aqui tudo bem: a afirmação de Vasco Graça Moura tem realmente muito de teoria da conspiração. Mas depois EPC acusa o director da Tapada de Mafra, Ricardo Paiva, de estar "do lado do oito". É que Ricardo Pais distinguiu entre área ardida e área devastada, que segundo ele corresponde a apenas 70 hectares dos 819 hectares da tapada. Diz EPC que Ricardo Paiva sofre de inabalável optimismo, pois afirma que "o incêndio natural e ambiental chega a ser benéfico, porque ajuda à recuperação das plantas, e logo à alimentação dos animais". Ironiza mesmo sobre o assunto:
Donde, convém que todos os anos se promova um incêndio... natural.
Ora, acontece que, de facto, os fogos podem ser benéficos. Não sou especialista no assunto, é claro, mas as opiniões de Ricardo Paiva não me parecem nada extremadas. Pelo contrário, parecem-me muito sensatas. Quem estiver interessado neste assunto pode experimentar recorrer ao inestimável Google, onde encontrará muita informação sobre regeneração de florestas e fogos controlados. Também se pode ler um artigo interessante sobre os fogos de 1988 no parque de Yellowstone, nos EUA.

2003-09-02

Flores 12 Aldeia da Cuada: os corredores entre os quartos são velhas canadas. A música de fundo é o vento no choupo de outro lado da janela. A solidão triste dos hoteis é aqui uma solidão bela, feita de prados onde pastam vacas.
Flores 11 De novo criança, descobri um velho cedro-do-mato, de tronco retorcido, agarrado à borda de um socalco. No seu tronco horizontal sento-me e fumo uma cigarrilha "Pérola", às escondidas do meu filho, ele sim já adulto, enquanto olho e ouço o mar e o vento à minha frente, e as eternas cascatas, fortalecidas por uma noite de chuva, na encosta atrás. A vida é isto.
Flores 10 Glossário:
Rolo
Praia de grandes calhaus rolados.
Canada
Velho caminho, normalmente empedrado e ladeado de muros de pedra solta.
Fajã
Zona plana fértil, muitas vezes junto ao mar, e resultado de uma quebrada.
Quebrada
Desabamento de terras.
Bagacina
Espécie de saibro natural, ou areão, de pedra vulcânica, com tons entre o preto e o vermelho.
Almoço
Pequeno-almoço.
Jantar
Almoço.
Ceia
Jantar.
Águas-vivas
Alforrecas ou medusas.
Império
Espécie de capela usada nas festas em honra do Espírito Santo.
Flores 9 Os recantos na ilha das Flores não costumam cheirar a urina: chove muito e os florentinos são poucos. Não se encontra lixo pelo chão: o vento leva-o ou a vegetação luxuriante engole-o. Além disso, os florentinos são poucos...
Mentiras As fotografias mentem-nos como as memórias.
Flores 8 O pôr do sol põe em tudo uma luz irreal e que, estranhamente, reduz a paisagem a um único plano. A esplanada do restaurante cheia e o parque de merendas cheio de actividade. Fim-de-semana de Agosto nas Flores. Um verdadeiro quadro de Bruegel, o Velho.

...

O sol pôs-se. A luz que há pouco criava um quadro irreal desapareceu. Agora é tudo mais prosaico. As conversas sem interesse, o cheiro desagradável dos churrascos, o vinho verde que aquece, à espera. Domingo, amanhã. Detesto domingos.
Flores 7 E agora o céu limpo e frio. O ar parado, vibrando apenas com os grilos e os mosquitos do fim da tarde. O sol põe-se. Todos os contornos da ilha estão claros, nítidos, alaranjados, depois de dias ocultos pela neblina. O paraíso.
Delícias simples Quanta felicidade numa torrada de broa a escorrer manteiga...
Águas-vivas Alforreca, árabe, no sul. Medusa, latina, no norte. Água-viva, uma belíssima metáfora, nos Açores.
Flores 6 Chove, chove sempre. A água acumula-se nos altos, forrados de espessos musgos, e filtra-se entre a matéria orgânica e a bagacina. Escorre lentamente, alimentando todo o ano centenas de ribeiras, milhares de cascatas e algumas lindíssimas quedas de água. Na costa, o vento arrefecido pelo mar arrefece por sua vez os basaltos, por onde escorre a bruma. De repente o vento pára. O céu descobre-se. O sol, impiedoso, impera. Os biscoitos, formações complexas e recortadas de basalto negro como carvão, aquecem. A beira mar torna-se um forno. A chuva, bendita, salva os Açores do destino de Cabo Verde.

2003-09-01

Suplício Habituei-me a anotar e sublinhar os livros, a dobrar o canto das páginas. Ler um livro emprestado é um suplício.
Flores 5 Canada dos Paus Brancos, Fajã Grande. Prados separados por muros de pedra solta, negro de basalto coberto ainda da cinza dos líquenes. O ruído do vento atlântico na árvores. O cantar das lavandiscas e dos melros. O voo ocasional de uma narceja. O ar límpido e uma sensação de eternidade. A nossa vida, vista daqui, não tem qualquer importância. As nossas preocupações, as nossas ambições, os nossos anseios tomam as suas verdadeiras proporções: nada de nada.

Em breve esta canada será alargada, asfaltada, destruída. A ideia dói-me. O homem continuará sempre igual a si próprio. As nossas qualidades, a iniciativa, a curiosidade, a incapacidade de estar parado e simplesmente contemplar, são os nossos piores defeitos. O que demorou decénios, mesmo séculos, a realizar, à força de braços e de animais, hoje demora semanas, por vezes dias. O poder não nos trouxe maior sensatez. Ontem conseguimos alterar a natureza, lenta e persistentemente. Hoje destruímo-la rápida e eficazmente.

Mas quem sou eu para criticar, lisboeta de férias?
Flores 4 Porque apreciamos tanto os sinais de miséria e impotência? As belas aldeias de basalto, com as suas ruas estreitas e mal aparelhadas, os muros de pedra solta, as canadas serpenteando entre prados e bosques, à beira das falésias, junto às cascatas, não foram construídas para serem belas. Foram construídas para servir as pessoas. Foram construídas assim porque não havia dinheiro, energia, para mais. Porque não havia tecnologia para as fazer de outra maneira. Se o passado foi de alguma forma benévolo para a natureza (e foi-o sempre menos do que nos parece), foi por impotência e não por intenção.
Peter Singer A filosofia ética de Peter Singer parece estar bem resumida na colecção de textos que ele próprio organizou e publicou sob o título "Writings on an Ethical Life", que recomendo. Nele Peter Singer expõe com habilidade todas as inconsistências do nosso raciocínio moral. Partindo de alguns princípios morais simples, tira conclusões com facilidade e aplica-as à sua própria vida. É, por isso, um filósofo militante, que argumenta contra os maus tratos aos animais e a favor do infanticídio por vontade dos pais até às duas semanas após o nascimento. Tal coerência entre o que se diz e o que faz é, talvez, louvável. Mas igualmente louvável é a atitude dos que, face à dificuldade em dizer a partir de quando um ser se pode dizer verdadeiramente humano, põem a fronteira, prudentemente, na concepção. Acho preferível ao activismo moral convicto de Peter Singer uma atitude de reconhecimento das gradações, dos tons de cinzento, das zonas de sombra no nosso raciocínio. Uma posição de reconhecimento da própria ignorância e, por isso mesmo, prudente. No fundo, acho preferível uma posição conservadora.
Flores 3 As Flores, como todas as ilhas, são caricaturas de sociedades maiores. A ilha das Flores é uma caricatura de Portugal. Disse-o o rapaz culto e pessimista do clube de internet e biblioteca das Lages das Flores, e disse bem. Lá estão as lixeiras a céu aberto, no final de uma canada. Lá estão as máquinas tirando pedra da Ribeira do Ferreiro. Lá está a britadeira, chaga na paisagem entre a Fajãzinha e a Fajã Grande. As extracções de bagacina. A casa do presidente da câmara a 20 metros do mar, poia imunda e infame na paisagem. O encanto da ilha das Flores não dura muito mais. Visitem-na enquanto podem.
Flores 2 A ilha das Flores é uma maravilha verde, húmida e brumosa, sem nada de tropical. Puro atlântico. Mas a maravilha está toda nos nossos olhos, na inacessibilidade dos morros, dos vales, das costas, locais que povoamos com a imaginação. As suas vetustas canadas, preservadas, como tudo na ilha, pelo desenvolvimento tardio da ilha, revelam-nos a custo recantos bucólicos, num misto de montanha, jardim abandonado e mar. Tudo é pequeno e frágil. Mas tudo parece imenso. Os poucos hectares da Fajã Grande, onde o regresso me traz sempre lágrimas aos olhos, parecem enormes. Que haverá ao fundo da cascata? Onde levará aquela velha canada abandonada?

Tudo isto desaparecerá em breve. O presidente da Câmara Municipal das Lages das Flores, num delírio do que ele julgará ser progresso, desenha uma malha densa de estradas pelos morros. Em breve a ilha tomará as suas verdadeiras proporções. Será finalmente o que sempre foi: um pequeno monte de basalto e bagacina, forrado de verde, entre as ondas.
Flores 1 Pior que um regime de pão e água, só mesmo substituir o pão por papo-seco das Flores. Pelo contrário, substituí-lo pelo pão da Sr.ª Elsa Maria C. Ramos Inocência, da Lomba, seria um regime digno de um rei. Como podem os florentinos suportar tais papo-secos é para mim um mistério.
Estupidez necessária Passei quase uma semana em arrumações e mudanças. Embora em rigor a ideia não faça sentido, sinto-me como a ministra das finanças: foi uma forma estúpida, embora necessária, de gastar o meu tempo. Nada pior que ao fim de dias de esforço de organização encontrar tudo no seu lugar. Vaziamente arrumado.
Belas canções

Há já muitos anos, a minha mãe deu-me um single de George Brassens a ouvir. Nunca esqueci "Le parapluie". É simplesmente uma canção perfeita:
Le parapluie

Georges Brassens

Il pleuvait fort sur la grand'route
Elle cheminait sans parapluie
J'en avais un, volé sans doute
Le matin même à un ami
Courant alors à sa rescousse
Je lui propose un peu d'abri
En séchant l'eau de sa frimousse
D'un air très doux elle m'a dit oui.

Un p'tit coin d'parapluie
Contre un coin d'paradis
Elle avait quelque chose d'un ange
Un p'tit coin d'paradis
Contre un coin d'parapluie
Je n'perdais pas au change
Pardi.

Chemin faisant, que ce fut tendre
D'ouïr à deux le chant joli
Que l'eau du ciel faisait entendre
Sur le toit de mon parapluie
J'aurais voulu, comme au déluge
Voir sans arrêt tomber la pluie
Pour la garder sous mon refuge
Quarante jours, quarante nuits.

Mais bêtement, même en orage
Les routes vont vers des pays
Bientôt le sien fit un barrage
A l'horizon de ma folie
Il a fallu qu'elle me quitte
Après m'avoir dit grand merci
Et je l'ai vue toute petite
Partir gaiement vers mon oubli
Zimbabwe, Doris Lessing e o Le Monde Diplomatique

No número Agosto da versão portuguesa do Le Monde Diplomatique (LMD), publica-se um artigo de Doris Lessing sobre o Zimbabwe intitulado "Chora, á Zimbabwe bem amado". A introdução feita pela revista deixou-me desconfiado:
Tendo nascido em 1919 e vivido com os seus pais na Rodésia do Sul (actual Zimbabwe) desde os 6 anos, a escritora britânica Doris Lessing é, antes de mais, conhecida como a militante feminista que abalou as ideias conservadoras com o seu romance de culto The Golden Notebook. Para gerações inteiras, ela foi também uma heróica combatente das injustiças, do colonialismo e do apartheid. Hoje, aos 84 anos, Doris Lessing, afirma sem rodeios a sua decepção em relação ao feminismo, mas também em relação aos dirigentes do Zimbabwe, país por cuja independância ela tanto se bateu. Traça aqui um retrato acusador do tão controverso presidente Robert Mugabe. Um autocrata que mandou prender o seu principal opositor, Morgan Tsvangirai, que depois foi obrigado a libertar. Mas a sua política é também marcada pelas pressões económicas e políticas das potências internacionais.
As últimas frases, claramente desculpabilizantes de Mugabe, que só o LMD poderia classificar como "controverso", não podiam corresponder ao conteúdo do artigo, pensei. Na realidade, o artigo de Doris Lessing não refere nunca tais "pressões".

Estimulado por uma tal introdução, comecei a ler o artigo. Deparei logo com o seguinte troço:
Se Mugabe tivesse tido o bom senso de ouvir estas vozes, teria podido transformar o país. Mas ignorava até que ponto confiavam nele. Tinha demasiado medo de sair da prisão em que se tinha encerrado. Rodeava-se apenas de amigos e de gente de má fé e governava segundo as regras "marxistas" retiradas dos manuais.
As aspas em torno de "marxistas" pareceram-se absurdas. Decidi tentar encontrar a versão original do artigo. Descobri que Doris Lessing publicou um artigo muito semelhante no número de 10 de Abril de 2003 da New York Review of Books (NYRB). (O artigo é pago, mas há uma cópia aqui.) Nele existe um troço semelhante:
If Mugabe had had the the sense to trust what he heard, he could have transformed the country. But he did not know how much he was trusted, because he was too afraid to leave his self-created prison, meeting only sycophants and cronies, and governing through inflexible Marxist rules taken from textbooks.
De facto, as aspas não constavam.

Uma breve comparação dos dois artigos mostra outras diferenças interessantes. Onde o artigo da LMD diz que
O nome de um homem está associado a este desastre. Ou antes, a esta tragédia. O de Robert Mugabe. Contrariamente à reputação de que gozava no início, o presidente do Zimbabwe foi sempre um homenzinho sem envergadura. Levou o país à tragédia. Agora, está fortemente desacreditado. É tarde demais.
o artigo da NYRB diz que
One man is associated with the calamity, Robert Mugabe. For a while I wondered if the word "tragedy" could be applied here, greatness brought low, but Mugabe, despite his early reputation, was never great; he was always a frightened little man. There is a tragedy, all right, but it is Zimbubwe's.

Mugabe is now widely execrated, and rightly, but blame for him began late. Nothing is more astonishing than the silence about him for so many years among liberals and well-wishers—the politically correct. What crimes have been committed in the name of political correctness. A man may get away with murder, if he is black. Mugabe did, for many years.
Ou seja, uma das frases mais fortes do artigo da NYRB, "a man may get away with murder, if he is black", não consta no artigo do LMD. Um outro troço (a negrito em baixo) que não consta no artigo do LMD é pouco elogioso para os governos comunistas:
The racial hatred that Mugabe has fomented will not die. Throughout the period from Independence onward, beginning in 1980, anti-white rhetoric went alongside the Marxist slogans that were as primitive as they would be if Marxism had been invented in Zim-babwe. Yet what everyone remarked on was the amiable race relations, friendliness between whites and blacks, compared to South Africa, where apartheid created such a bitter legacy. Fiery articles in the government press were read in the same perfunctory way as were the public pronouncements of the Soviet government, or any Communist government. The official rhetoric in Zimbabwe was worse than anywhere in Africa—so said a United Nations report. "Never has rhetoric had so little to do with what actually went on."
Será que Doris Lessing escreveu dois artigos semelhantes? Terá ela próprio alterado o artigo da NYRB? Ou terá sido o LMD a truncar e a acrescentar as aspas ao tra(duz)ir livremente o artigo da NYRB? É uma excelente questão.