2004-04-23

Vale tudo

Francisco Louçã, no Público de hoje, refere como patética uma cena ocorrida na última conferência de imprensa de Bush, que transcreve como se segue:
Na semana passada, pouco depois de ter perdido o controlo de algumas das principais cidades iraquianas, George W. Bush tomou a iniciativa excepcional de promover uma conferência de imprensa para se explicar. Mas quando os jornalistas insistiram em perguntar que erros tinham sido cometidos, o Presidente balbuciou: "Tenho a certeza de que alguma coisa me virá à ideia no meio desta conferência de imprensa, com toda esta pressão de tentar arranjar uma resposta, mas ainda não veio. Eu ainda não... vocês põem-me aqui debaixo dos projectores e talvez eu não seja rápido... tão rápido quanto devia para arranjar uma". Bush concluiu que era melhor que lhe tivessem dado previamente a pergunta por escrito.

Ao assistir a esta cena patética, alguns terão pensado nas semelhanças entre Bush e Nixon. Muitos mais têm argumentado que a história se repete sempre como tragédia e que o Iraque é um novo Vietname. Estão enganados: o Iraque é muito pior.
A conferência de imprensa encontra-se transcrita nas páginas de Casa Branca. Transcrevo a parte tra(duz)ida por Louçã:
Q: Thank you, Mr. President. In the last campaign, you were asked a question about the biggest mistake you'd made in your life, and you used to like to joke that it was trading Sammy Sosa. You've looked back before 9/11 for what mistakes might have been made. After 9/11, what would your biggest mistake be, would you say, and what lessons have you learned from it?

THE PRESIDENT: I wish you would have given me this written question ahead of time, so I could plan for it. (Laughter.) John, I'm sure historians will look back and say, gosh, he could have done it better this way, or that way. You know, I just -- I'm sure something will pop into my head here in the midst of this press conference, with all the pressure of trying to come up with an answer, but it hadn't yet.

I would have gone into Afghanistan the way we went into Afghanistan. Even knowing what I know today about the stockpiles of weapons, I still would have called upon the world to deal with Saddam Hussein. See, I happen to believe that we'll find out the truth on the weapons. That's why we've sent up the independent commission. I look forward to hearing the truth, exactly where they are. They could still be there. They could be hidden, like the 50 tons of mustard gas in a turkey farm.

One of the things that Charlie Duelfer talked about was that he was surprised at the level of intimidation he found amongst people who should know about weapons, and their fear of talking about them because they don't want to be killed. There's a terror still in the soul of some of the people in Iraq; they're worried about getting killed, and, therefore, they're not going to talk.

But it will all settle out, John. We'll find out the truth about the weapons at some point in time. However, the fact that he had the capacity to make them bothers me today, just like it would have bothered me then. He's a dangerous man. He's a man who actually -- not only had weapons of mass destruction -- the reason I can say that with certainty is because he used them. And I have no doubt in my mind that he would like to have inflicted harm, or paid people to inflict harm, or trained people to inflict harm on America, because he hated us.

I hope I -- I don't want to sound like I've made no mistakes. I'm confident I have. I just haven't -- you just put me under the spot here, and maybe I'm not as quick on my feet as I should be in coming up with one.
Para Louçã, vale tudo.

2004-04-20

Há esperança

Palestinianos apelam a resistência pacífica:
We the undersigned, the sons of the Palestinian people, from various political, ideological, and social frameworks that are united in their struggle and steadfastness, condemn Israel's blatant aggression against our people, which was manifested a couple of days ago in the criminal and base act carried out by Sharon and his extreme right-wing gang that led to the martyr death of the leader Sheikh Ahmad Yassin and his freedom-fighting companions.

[Even while] we stress the rights of our people, which have been confirmed by all the international treaties, [and stress our right] to use all means to defend our people, even if we explode from pain at the terrible tragedy, we call upon the sons of our people across the homeland to [do as] the national interest dictates: To take the initiative from the hands of the criminal occupation gang, to contain the rage, and to rise up again a non-violent Intifada of the masses, broad in scope, with clear goals and [a] sane message, to be initiated and led by our freedom-fighting people.

[This Intifada] will make Sharon miss the opportunity to crown his aggression against our people and against the holy places with the final touches of his security plan.

As we appeal [to make] this Intifada of unity a step toward reawakening to popular activity, purposeful and disciplined, with a clear program and [expected] political yield, we stress our commitment to our just and legitimate demands and to our rights. We call for the unification of the ranks, based on national unity and a united leadership resisting the occupation.

Enough of the criminal assassination operations. Enough of the bloodshed. Enough of the occupation.
Muito céptico, desejo-lhes o maior sucesso no apelo e espero que a nova forma de resistência tenha bons resultados.

2004-04-18

Dito e feito

Zapatero decidiu antecipar o cumprimento da sua promessa de retirar as tropas do Iraque no caso de a ONU não tomar o controlo da situação até Junho: a retirada das tropas espanholas será imediata. Sempre se poupam uns quantos soldados espanhóis mortos e, quem sabe, talvez Bin Laden cumpra a sua promessa e a Espanha se livre de mais atentados. Deixaram de ser necessárias as negociações com terroristas propostas por Mário Soares. Basta ceder-lhes. Até que, um dia, "a bandeira do Islão [se erga] sobre o número 10 de Downing Street" e, antes, sobre La Moncloa.

2004-04-15

Bush escreve a Sharon

A carta que Bush escreveu a Sharon começa por saudar como corajoso o plano de Sharon que prevê o desmantelamento total dos colonatos da Faixa de Gaza e parcial dos colunatos na Cisjordânia. Até aqui nada a dizer: é um passo na direcção certa. Bush depois apresenta um conjunto de exigências à autoridade palestiniana, que incluem a sua demarcação clara de actos de violência contra Israel. Aqui a posição de Bush pode começar a ler-se como pró-israelita. De facto, Bush não se limita a exigir acções contra o incitamento do terrorismo, da matança indiscriminada de civis, mas afirma que os palestinianos "must undertake an immediate cessation of armed activity". O problema é que, independentemente de poder ter havido no passado boas razões para isso, os palestinianos vivem sob ocupação e têm o direito de a combater. O fim desses combates não pode ser exigido como condição prévia para as negociações, mas sim como resultado delas. Há que distinguir muito claramente entre combate contra uma ocupação e terrorismo, e Bush não o faz. E há que fazer muito claramente essa distinção mesmo que os palestinianos não a façam. Bush continua dizendo que a resolução do problema do retorno dos refugiados palestinianos tem de passar por permitir o seu regresso não às localidades de origem, mas a um novo estado da Palestina, a criar. A posição parece realista, mas peca por não prever qualquer contrapartida para o facto de os refugiados não poderem regressar a casa. Bush depois afirma que o muro que Israel está a construir "should be a security rather than political barrier, should be temporary rather than permanent, and therefore not prejudice any final status issues including final borders". Parece também uma posição sensata, bem como a afirmação de que é irrealista esperar que as fronteiras de 1949 venham a ser as fronteiras definitivas entre os estados de Israel e da Palestina. Mas não podemos, no meio de tanta aparente sensatez, deixar de notar que as cedências mais significativas recaem quase todas sobre os palestinianos. Bush não deixa claro, por exemplo, se a manutenção de alguns colonatos na Cisjordânia (aparentemente seis, com um total de cerca de 100 000 colonos, segundo a BBC World, presumindo-se que a maioria há menos de 25 anos), corresponderá à cedência por Israel algum do seu território. O problema é que não basta que os EUA, e Bush em particular, esteja empenhado no estabelecimento de uma Palestina "viável, contígua, soberana e independente". É preciso mais. É preciso que a solução encontrada seja justa. Se é fundamental que não se ceda ao terrorismo, também o é que não se deixe, em nome do seu combate, de ceder naquilo que é justo. Temos de ter a força e a coragem de tornar o terrorismo irrelevante. As causas justas devem ser defendidas, mesmo que sejam apoiadas por terroristas.

2004-04-05

"Ensaio sobre a mentira" ou da honestidade jornalística

A palavra "mentir" pode ser utilizada no sentido de "errar no que diz ou conceitua" (Novo Aurélio Séc. XXI). Neste sentido não implica a consciência de se estar a fazer uma afirmação falsa. No entanto, o sentido mais comum da palavra é o de "afirmar coisa que se sabe ser contrária à verdade" (Novo Aurélio Séc. XXI). Nuno Pacheco sabe bem que quando afirma "Colin Powell mentiu" será assim interpretado, mesmo que mais tarde diga que, se Colin Powell o fez, "não [foi] por culpa dele" (admito que por "não ter culpa" Nuno Pacheco entenda que Colin Powell não sabia que o que estava a afirmar não correspondia à verdade). A escolha do verbo "mentir" não pode ter sido inocente. Destinou-se provavelmente a fazer passar por verdadeira uma afirmação que Nuno Pacheco não sabe (nem pode ainda saber) se corresponde à verdade, por muito convencido que esteja disso. É que não só Colin Powell não confessou ter mentido, como não há qualquer prova de que o tenha feito (as declarações de Colin Powell estão aqui).

Mas Nuno Pacheco tem razão quando diz que este caso tem de ser muito bem investigado, para que não se volte a repetir. Esperemos que os inquéritos em curso nos EUA lancem um pouco de luz sobre este assunto.