No número Agosto da versão portuguesa do Le Monde Diplomatique (LMD), publica-se um artigo de Doris Lessing sobre o Zimbabwe intitulado "Chora, á Zimbabwe bem amado". A introdução feita pela revista deixou-me desconfiado:
Tendo nascido em 1919 e vivido com os seus pais na Rodésia do Sul (actual Zimbabwe) desde os 6 anos, a escritora britânica Doris Lessing é, antes de mais, conhecida como a militante feminista que abalou as ideias conservadoras com o seu romance de culto The Golden Notebook. Para gerações inteiras, ela foi também uma heróica combatente das injustiças, do colonialismo e do apartheid. Hoje, aos 84 anos, Doris Lessing, afirma sem rodeios a sua decepção em relação ao feminismo, mas também em relação aos dirigentes do Zimbabwe, país por cuja independância ela tanto se bateu. Traça aqui um retrato acusador do tão controverso presidente Robert Mugabe. Um autocrata que mandou prender o seu principal opositor, Morgan Tsvangirai, que depois foi obrigado a libertar. Mas a sua política é também marcada pelas pressões económicas e políticas das potências internacionais.As últimas frases, claramente desculpabilizantes de Mugabe, que só o LMD poderia classificar como "controverso", não podiam corresponder ao conteúdo do artigo, pensei. Na realidade, o artigo de Doris Lessing não refere nunca tais "pressões".
Estimulado por uma tal introdução, comecei a ler o artigo. Deparei logo com o seguinte troço:
Se Mugabe tivesse tido o bom senso de ouvir estas vozes, teria podido transformar o país. Mas ignorava até que ponto confiavam nele. Tinha demasiado medo de sair da prisão em que se tinha encerrado. Rodeava-se apenas de amigos e de gente de má fé e governava segundo as regras "marxistas" retiradas dos manuais.As aspas em torno de "marxistas" pareceram-se absurdas. Decidi tentar encontrar a versão original do artigo. Descobri que Doris Lessing publicou um artigo muito semelhante no número de 10 de Abril de 2003 da New York Review of Books (NYRB). (O artigo é pago, mas há uma cópia aqui.) Nele existe um troço semelhante:
If Mugabe had had the the sense to trust what he heard, he could have transformed the country. But he did not know how much he was trusted, because he was too afraid to leave his self-created prison, meeting only sycophants and cronies, and governing through inflexible Marxist rules taken from textbooks.De facto, as aspas não constavam.
Uma breve comparação dos dois artigos mostra outras diferenças interessantes. Onde o artigo da LMD diz que
O nome de um homem está associado a este desastre. Ou antes, a esta tragédia. O de Robert Mugabe. Contrariamente à reputação de que gozava no início, o presidente do Zimbabwe foi sempre um homenzinho sem envergadura. Levou o país à tragédia. Agora, está fortemente desacreditado. É tarde demais.o artigo da NYRB diz que
One man is associated with the calamity, Robert Mugabe. For a while I wondered if the word "tragedy" could be applied here, greatness brought low, but Mugabe, despite his early reputation, was never great; he was always a frightened little man. There is a tragedy, all right, but it is Zimbubwe's.Ou seja, uma das frases mais fortes do artigo da NYRB, "a man may get away with murder, if he is black", não consta no artigo do LMD. Um outro troço (a negrito em baixo) que não consta no artigo do LMD é pouco elogioso para os governos comunistas:
Mugabe is now widely execrated, and rightly, but blame for him began late. Nothing is more astonishing than the silence about him for so many years among liberals and well-wishers—the politically correct. What crimes have been committed in the name of political correctness. A man may get away with murder, if he is black. Mugabe did, for many years.
The racial hatred that Mugabe has fomented will not die. Throughout the period from Independence onward, beginning in 1980, anti-white rhetoric went alongside the Marxist slogans that were as primitive as they would be if Marxism had been invented in Zim-babwe. Yet what everyone remarked on was the amiable race relations, friendliness between whites and blacks, compared to South Africa, where apartheid created such a bitter legacy. Fiery articles in the government press were read in the same perfunctory way as were the public pronouncements of the Soviet government, or any Communist government. The official rhetoric in Zimbabwe was worse than anywhere in Africa—so said a United Nations report. "Never has rhetoric had so little to do with what actually went on."Será que Doris Lessing escreveu dois artigos semelhantes? Terá ela próprio alterado o artigo da NYRB? Ou terá sido o LMD a truncar e a acrescentar as aspas ao tra(duz)ir livremente o artigo da NYRB? É uma excelente questão.
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