2003-03-23

Tabula Rasa Steven Pinker publicou há pouco tempo o seu último livro: "The Blank Slate: The Modern Denial of Human Nature". Nele ataca as tentativas recentes de negação da natureza humana, nomeadamente da enorme influência genética na personalidade de cada um de nós e no próprio funcionamento das sociedades. Segundo Pinker, as doutrinas mais comuns neste fenómeno de negação são as da Tabula Rasa, do Bom Selvagem e do Fantasma na Máquina. Segundo a doutrina da Tabula Rasa, originada em Locke, o ser humano nasceria sem qualquer pré-programação genética, ou seja, a sua personalidade seria determinada unicamente pelas experiências pós-nascimento. A doutrina do Bom Selvagem, por outro lado, teria origem em John Dryden, embora seja normalmente atribuída a Rousseau, e diz que o ser humano nasce naturalmente livre e bom, sendo corrompido pela sociedade. Finalmente, a doutrina do Fantasma na Máquina afirma que existe uma dualidade entre corpo e mente: a mente controla o corpo, habitando-o, e não é um produto do próprio corpo. O livro está escrito de uma forma brilhante, pelo menos até onde o li até agora, encarregando-se de demonstrar a falsidade de cada uma destas doutrinas e de apontar as consequências nefastas que a crença em cada uma delas traz para as nossas sociedades.

As duas primeiras falácias são sustentáculo ideológico da esquerda. Quando a esquerda defende que é necessária prevenção, pois a repressão é uma violência desnecessária, está a basear-se na doutrina do Bom Selvagem, pois nega que a maldade possa ser inata, sendo por isso curável ou, pelo menos, possível de prevenir. Daí, por exemplo, os seus ataques às políticas de tolerância zero, aplicadas com sucesso retumbante por Giuliani em Nova Iorque. Quanto à primeira doutrina, ela tem sido aplicada com notável sucesso na negação das diferenças entre os sexos ou entre as diferentes raças. De facto, qualquer estudo científico que tente fazer uma análise das características das diferentes raças humanas é classificada automaticamente de racista. Autores como Stephen Jay Gould (1941-2002), no Capítulo 12 de "The Flamingo's Smile", argumentam que a divisão em raças é arbitrária, e não encaixa nas classificações usadas pela ciência. Em zoologia, segundo ele, abaixo no nível das espécies só se definem sub-espécies, e os critérios necessários para haver sub-espécies diferentes da espécie Homo sapiens não são preenchidos por aquilo a que chamamos raças. Terminava memo dizendo que "Human equality is a contingent fact of history". Esta análise é, claramente, ideológica. As definições de espécie e sub-espécie não são, em si, científicas. São definições de mera conveniência. Isto é claro se se compararem as definições de espécie em zoologia e em botânica, por exemplo. Em zoologia o facto de dois indivíduos poderem ter descendentes férteis implica que pertencem à mesma espécie. Em botânica não: existem plantas classificadas em espécies diferentes que podem cruzar-se entre si, produzindo descendência não-estéril. Além disso, Gould, como muita gente de esquerda, parecia confundir igualdade perante a lei ou igualdade de dignidade e direitos, com igualdade de facto. A negação a priori das diferenças entre raças e sexos é ideológica e profundamente anti-científica. Num ponto lhes dou razão, no entanto. Estudos científicos que alguma vez viessem a demonstrar diferenças entre raças humanas, por pequenas que fossem, viriam inevitavelmente a ser usadas por muita gente para justificar tratamentos discriminatórios. O que não creio é que a negação da ciência e da verdade seja a solução para este possível problema.

Mas a verdade é que a ciência e a verdade não sofrem apenas o ataque da esquerda pós-modernista. Alguma direita religiosa, especialmente nos EUA, mantém uma longa guerra com a teoria da evolução das espécies de Darwin (criticada pelo próprio Stephen Jay Gould): o criacionismo. A última versão do criacionismo, e talvez a mais inteligente surgida até hoje, é a da Concepção Inteligente, que mantém que as características dos seres vivos são tais que revelam inevitavelmente que uma inteligência os concebeu, tal como o mecanismo de um relógio revela a inteligência que o desenhou.

Não há dúvida. A ideologia é avessa à ciência e à verdade.

P.S. Steven Pinker escreveu um artigo sobre o mesmo assunto no último número da Skeptical Inquirer, revista que recomendo a todos os amantes da ciência.

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