2004-12-10

As novas guerras do ópio

No discurso de tomada de posse como presidente democraticamente eleito do Afeganistão, Hamid Karzai elegeu o combate à produção de ópio e à transformação deste em heroína como o principal objectivo do Estado afegão. Karzai descreveu a generalização da produção de ópio como “uma ameaça maior do que o terrorismo ou a invasão soviética”.

Segundo o Afghanistan Opium Survey (2004), da responsabilidade do Office on Drugs and Crime da ONU, tem razões para estar preocupado. A produção de ópio aumentou 17% em 2004, estimando-se que represente cerca de 87% da produção opiácea mundial, a área cultivada passou para 131 000 hectares (um aumento de 64% em relação a 2003) e a produção generalizou-se em termos territoriais.

Para a esquerda liberal americana o aumento da produção de ópio é a “evidência do fracasso da estratégia militar”. O derrube em cerca de três meses de um dos regimes mais repressivos do mundo e a obtenção de uma vitória militar sem precedentes num território sistematicamente considerado inexpugnável são relativizados. Afinal, Bush ganhou a “guerra dos Talibans” mas perdeu a “guerra do ópio” (a equivalência entre ambas as expressões é assumida implicitamente). Charles Krauthammer indigna-se com este raciocínio absurdo, mas também ele comete um erro, não menos absurdo, ao relativizar o problema da produção crescente de ópio no Afeganistão pós-tirania Taliban.

Nem Krauthammer nem a esquerda americana têm razão. A possibilidade de transformação do Afeganistão num “narco-estado” é grave, mas na verdade está longe de ser um sinal de fracasso: é, pelo contrário, um sintoma do sucesso. A afirmação só parece estranha a quem tem uma visão teleológica da história e imagina que a democracia e o liberalismo são uma via segura para a felicidade e para a eterna abundância. É uma visão ingénua. Nas democracias liberais, os problemas sociais e económicos são, muitas vezes, um “jogo de pinos”: ao empurrar um pino para baixo há outro que fatalmente se ergue.

Nos EUA já se reclama por mais dinheiro e soldados para combater na (renovada) “guerra do ópio”. E aqui é que, infelizmente, as coisas se complicam: se os americanos decidirem investir substanciais recursos humanos e materiais no Afeganistão por esta razão é bom que estejam conscientes de duas coisas. Em primeiro lugar que só podem esperar diminuir drasticamente a produção afegã e não a produção mundial. Em segundo lugar, que essa redução “local” provocará provavelmente um aumento da dimensão do mercado mundial de droga e, portanto, do valor do narcotráfico.

Convém recordar de que forma o Afeganistão, o Paquistão e o chamado “triangulo dourado” se tornaram os produtores dominantes de ópio. Na década de 70 Nixon declarou uma “guerra à droga”. Na altura, a Turquia era o principal produtor e os laboratórios de produção de heroína em França forneciam cerca de 80% da heroína consumida nos EUA. A operação foi um “sucesso”: a produção turca caiu drasticamente. Mas o resultado foi diferente do pretendido. O preço da heroína, que contem um enorme “prémio de risco” subiu imenso, o que forneceu um enorme estímulo à produção em países “alternativos”: o sudoeste asiático tornou-se o centro vital da produção de heroína. Do lado da “procura” a repressão sobre o consumo interno nos EUA levou os produtores a procurarem outros mercados. O consumo de drogas na Europa aumentou enormemente. Porque o consumo de droga tem uma elevada elasticidade rendimento, o resultado conjugado foi um substancial aumento da dimensão global do mercado.

Se este foi o resultado na década de 70, imagine-se o que acontecerá agora, com o renovado interesse na “guerra ao ópio” num pais que é responsável por cerca de 87% da produção mundial. No curto prazo, sem dúvida que existirão “sucessos”, mas é bem provável que o preço desses sucessos seja o nascimento de problemas ainda maiores noutro lado do mundo.

No séc. XX o único estado a conseguir reduções significativas na produção e consumo de ópio foi a República Popular da China na década de 50. A “tecnologia de sucesso” foi simples: repressão brutal e generalizada. No caso do Afeganistão, o único ano em que se registou uma drástica diminuição da produção de ópio foi em 2001, através de brutais medidas de repressão levadas a cabo pelos talibans. O aumento e generalização da produção de ópio no Afeganistão é uma “consequência não intencional” da frágil e incipiente democracia liberal afegã, do seu reduzido controlo sobre o território e da consequente incapacidade de impor a soberania da lei. A declaração de Karzai é de uma enorme coragem. Jurar enfrentar os grupos que controlam a produção de ópio não é “apenas” uma escolha de política pública: é correr um sério risco de vida. Mas infelizmente interessa acima de tudo aos afegãos.

Não se consegue resolver o “problema da droga” suprimindo a produção no Afeganistão: só uma alteração do padrão de “preferências” dos consumidores é que é susceptível de ter sucesso. Em regimes totalitários como a China comunista, ou o Afeganistão taliban a repressão brutal funcionou. Nas democracias liberais só há uma arma: a educação cívica. O resto é ignorância ou ingenuidade. Ambas costumam ter um preço elevado.

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