Poucos dirão que 2004 foi “aborrecido”, menos ainda que foi “bom”. A 11 de Março os europeus descobriram que não estão ao abrigo do terrorismo islâmico e a Espanha ascendeu à duvidosa categoria de primeiro estado ocidental a capitular perante as exigências dos terroristas. Desde então, certamente por coincidência, uma enorme quantidade de reféns foi raptada e massacrada por bandos de infra-humanos como forma de pressão sobre inúmeros governos nacionais. Mário Soares achou que se devia “dialogar” com essa gente (ou com quem os atiça), Zapatero poupou-se a “diálogos” e simplesmente fez-lhes a vontade.
Entre Maio e Junho assistiu-se a mais um triste espectáculo político e jornalístico, com uma parte substancial da esquerda a achar que os desmandos de uma soldadesca mal preparada e mal liderada na prisão de Abu Grahib eram o “equivalente ético” dos massacres, guerras, prisões, torturas e execuções praticadas pelo regime tirano de Saddam Hussein. Aliás, em geral, massacres e barbaridades avulsas perpetradas por árabes beneficiam de um substancial “desconto moral” entre boa parte da opinião pública europeia: só assim se compreende a relativização do genocídio em Darfur, ou a igualdade implícita que frequentemente se estabelece entre os atentados terroristas palestinianos e as acções militares de retaliação israelita.
Agosto e Setembro trouxeram dois exemplos claros dos perigos autoritários das chamadas democracias “iliberais”. Em Agosto, na Venezuela o populismo perigoso e desestabilizador de Hugo Chavez foi democraticamente referendado. Em Setembro, as cerca de 400 crianças mortas em Beslan, na Ossétia do Norte, foram instrumentalmente úteis aos objectivos autoritários de Putin, que usando o mais velho pretexto dos tiranos (a existência de um “inimigo externo”) aproveitou a ocasião para reforçar os seus poderes pessoais e da clique de ex-KGB’s que o rodeia. A Rússia está hoje em reversão acelerada da trajectória de democratização e liberalização seguida ao longo da década de 90 e poderá a breve trecho vir a desestabilizar fortemente a Ásia — veja-se este artigo.
2004-12-29
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