2004-12-29

2004: os EUA

O principal acontecimento internacional do ano foram as eleições americanas. Desde o início das primárias democratas que Howard Dean era o favorito da esquerda. Mas era também o favorito dos Republicanos, que perceberam que o radicalismo de Dean tornaria a reeleição de Bush muito mais fácil. Dean deu, literalmente, “o berro”, deixando os Democratas em dúvida quanto ao seu (dele) equilíbrio mental. Enquanto Dean cai a pique nas sondagens John Kerry emerge dos bastidores cinzentos das primárias. Em dois meses acumula vitórias fáceis e com o triunfo na Super Tuesday, em Março, torna-se de facto o candidato Democrata.

Gavin Newsom, o Mayor de San Francisco, coloca a polémica dos “casamentos” homossexuais no topo da discussão política. A discussão implica questões maiores sobre a natureza da constituição americana e da própria sociedade. A separação constitucional entre o Estado e a religião existente nos EUA pretende criar uma sociedade secular ou defender a liberdade de culto? A resposta "certa" é a segunda; os Democratas estão desde há muito apostados em impor a primeira, através de uma "interpretação construtiva e ideológica" da constituição. Em Novembro os Democratas pagaram, mais uma vez, o preço da sua própria confusão entre a natureza da sociedade americana e aquilo que a chamada “Nova Esquerda”, que controla o partido, desejaria que ela fosse.

A “Nova Esquerda”, definida constitutivamente pelo célebre Manifesto de Port Huron, começou por reescrever a história americana. A prodigiosa acumulação de riqueza verificada nos EUA durante um século, era um “mito” capitalista, manchado pela “exploração do outro” — a minoria circunstancialmente útil: o “índio”, o “negro”, a “mulher” ou o “gay”, todos reduzidos à categoria cénica do “oprimido”. Onde o partido de Roosevelt via “progresso”, o partido de Kerry vê “exploração, opressão sexual e racial e imperialismo”.

Com a excepção de alguns núcleos cosmopolitas, para os quais as “narrativas alternativas” da “Nova Esquerda” são imposturas convenientes, a generalidade dos americanos não se revê nesta distorção grotesca da sua história, tradições e costumes. Em tempos difíceis preferiu esmagadoramente o optimismo de Reagan, que George W. Bush corporiza e que ligou magistralmente ao providencialismo de Lincoln.

Para os menos atentos, parece que os EUA “mudaram”, que se tornaram mais conservadores. Nada de mais falso: nas 37 eleições presidenciais desde 1860 (a primeira ganha pelos Republicanos), os Democratas só conseguiram a vitória por 14 vezes. Nos últimos 60 anos, apenas em duas ocasiões é que o candidato Democrata obteve 50% (ou mais) dos votos. Com a reeleição de Bush, há 44 anos consecutivos que o presidente dos EUA é originário dos estados do sul.

Há muito que os Democratas perderam a “América”, esse vasto continente entre a costa leste e a Califórnia. Esse continente levou, mais uma vez, o candidato Republicano a uma retumbante vitória política, apesar da pressão mediática da esquerda, que durante a campanha eleitoral foi quase sufocante. Bush não ganhou por ter sido especialmente competente no seu primeiro mandato: não foi. Bush ganhou porque o proselitismo esquerdista dos democratas o deixou praticamente “a sós” com a América moral, a “nação escolhida” de Lincoln. Essa América não se revê na família “alternativa”, nem acha bem que tanto o noivo como a noiva tenham bigode.

No “day after” a esquerda americana estava estupefacta, aliás tal como uma Europa, largamente pós-religiosa. Rejeitada, com uma derrota política esmagadora para digerir, uma parte do partido Democrata refugiou-se no expediente psicológico dos fracos: entrou em “negação”. Outros, entre políticos e comentadores, preferiram desatar a insultar os eleitores. A ficção redentora era agora que Bush tinha ganho com o votos dos “estúpidos”. É normal que o partido Republicano não se incomode muito com o assunto: afinal de contas tem a generalidade dos gurus Democratas a trabalhar incessantemente para a eleição de mais um presidente Republicano em 2008.

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