2004-12-21

Cidadania

Saltando de canal em canal, a fazer tempo para o início de um filme que não tive tempo nem motivação para ver nas salas de cinema, dou com “aquilo”. A primeira imagem é um grande plano de uma turba ululante e enraivecida. Gente de diferentes idades e aparências, alguns provavelmente pais (e avôs), mas unidos numa raiva indistinta e cega, cuspindo insultos, cuspindo um ódio irracional ou cuspindo apenas. Cadeiras, garrafas e sei lá que mais, tudo pelos ares no meio da fúria colectiva. Desvairados, empoleiram-se na vedação; basta o rastilho do primeiro a saltá-la e o comportamento cobarde de manada fará o resto. A vedação está lá, afinal de contas, com o propósito do costume, para separar os animais irracionais dos seres humanos, mas a lógica espacial está invertida: as bestas estão do lado de fora da cerca.

O que acabei de descrever não ilustra completamente o triste espectáculo a que, por inadvertência, assisti (nem é preciso dizer que se passou durante um "jogo" de futebol...). Mas serve como exemplo sociológico para se compreenderem duas coisas: a importância da soberania da lei e a origem de muitos dos problemas do país.

Outros países têm problemas de ordem civil semelhantes e lidam com eles. Quando, por imagens de circuito vídeo, ou por imagens televisivas, alguns cavalheiros entusiasmados são apanhados a garantirem em alto e bom som que conheciam muito bem a “senhora sua mãe” (e até mesmo a “sua avó”) e enfatizando o discurso com actos avulsos de destruição de propriedade alheia, estes são — imediatamente ou não — convidados para uma conversa esclarecedora nas instalações da esquadra mais próxima. Nuns casos, é-lhes fortemente sugerida a hospedagem por uma noite, noutros alvitra-se uma estadia mais prolongada, noutros ainda a necessidade de compensações monetárias e o que mais o senhor juiz decidir. Para alguns, crónicos reincidentes, a perspectiva de poderem regressar à “arena” torna-se impossível e a polícia garante a efectivação da determinação.

Nesses países dispensam-se, por norma as vedações em locais semelhantes. Não são “paraísos na Terra”, nem tiveram “sorte”. Dão-se ao incómodo de garantir, da melhor forma possível e em esforço contínuo, uma coisa simples: a aplicação efectiva da lei. Portugal não é um desses países. Num dos raros momentos em que o Presidente da República foi capaz de vencer as hesitações, resumiu a coisa de forma certeira: para os portugueses a lei é uma espécie de conjunto de “sugestões”, de indicações comportamentais que podem ou não ser seguidas consoante a sua apreciação das circunstâncias. Ou seja: a lei é letra morta. Violência, vandalismo e um clima generalizado de "pequena corrupção e ilegalidade" não são moralmente equivalentes mas têm uma origem comum na "irrelevância" da lei em Portugal.

Portugal é como é porque é assim que os portugueses o querem. Os costumes e os hábitos sociais são mais importantes e precedem as leis. E os costumes portugueses estavam ali bem evidentes: há uma linha invisível que liga a turba enraivecida de ontem às multidões de basbaques sempre prontas para encenações de “justiça popular” à porta dos tribunais, aos antepassados sociológicos de todos eles que participaram nos vergonhosos “julgamentos” populares em 1975 e se quiséssemos podíamos prolongar essa linha retrospectiva na direcção das multidões que se pelavam por um “churrasco de judeus” aos Domingos no Terreiro do Paço, ou à multidão descrita por Fernão Lopes na Crónica de D. João I, que “ouviu, julgou e sentenciou” o bispo de Lisboa, lançado do alto da torre da Sé, despojado e apedrejado e cujos restos foram deixados aos cães. O "costume nacional" é o da turba que faz, modifica e aplica a sua própria "lei", perante a indiferença, ou pior ainda, com a conivência dos responsáveis pelas leis legitimamente aprovadas.

O comportamento das turbas de hoje não é muito diferente do das turbas em tempos mais recuados — o “progresso técnico” foi tão rápido e impressionante que nos esquecemos da necessidade de preservação e adaptação de uma “razão prática”, de uma ética individual e social, sem a qual nos reduzimos como sociedade ao triste espectáculo de uma barbárie mediática. Mas hoje a multidão tem um peso político que em perspectiva histórica é inigualável. É ouvida em directo, a título de “opinião pública”, sem que ninguém cuide de tentar responder a uma pergunta simples: os prestimosos cidadãos que representam a “opinião pública” em directo a meio de uma manhã ou de uma tarde de trabalho são os cidadãos mais empenhados ou apenas os mais ociosos — em linguagem económica, os que têm o mais baixo “custo de oportunidade” do tempo?

A multidão é “sondada”, “inquirida”, a sua atenção televisiva é medida e todo este volume de dados, mais próximo do ruído estatístico do que de outra coisa qualquer é considerada por decisores empresariais e políticos: a “opinião pública” é o novo oráculo. Nos últimos tempos até decisões de regime são justificadas (também) com base nessa “opinião pública”, não faltando quem, à direita e à esquerda, exija mais “opinião pública” como alvará político para demolir e construir ao gosto dos tempos “novas democracias”.

A utopia tecnológica da “democracia em directo” parece agora possível, mas não é mais do que o sonho de recuperação em larga escala de uma polis grega que nunca foi “democrática” no sentido contemporâneo da máxima inclusividade política. Os efeitos da “democracia SMS” não se resumem às patéticas e largamente inócuas garraiadas de bloquistas e sindicalistas — a lógica dicotómica e acéfala do “se concorda marque xxx; se discorda marque yyy” tende a tornar-se dominante e a influenciar cada vez mais a agenda política e a natureza da governação. Infelizmente as “utopias” são o que sempre foram: antecipações de horrores sociais.

Não advogo “censuras” nem restrições à divulgação de "opiniões". Não tenho o “milagre profano” da virtude cívica guardado no bolso, mas com a qualidade da “cidadania” actual, o melhor a fazer é garantir que votam ordeiramente, de preferência de quatro em quatro anos, para renovar os decisores da instituição Estado e esperar que estes, uma vez eleitos, não se deixem impressionar muito pela turba.

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