Foi divulgado esta semana o documento contendo as propostas de reforma das Nações Unidas (“A More Secure World: Our Shared Responsability”). Inúmeros artigos foram escritos, antes e depois da publicação do relatório, defendendo em geral três tipos de posições. Primeiro, os crentes no multilateralismo favoráveis à ideia de reforma (ainda que não coincidentes quanto ao conteúdo e variantes de algumas propostas) e que acusam os críticos de usarem os factos já conhecidos sobre o envolvimento de altos funcionários da ONU no escândalo do programa Oil For Food como “manobra de descrédito”. Segundo, alguns críticos americanos da ONU, aparentemente mais interessados em enfraquecer a representação europeia no Conselho de Segurança do que nas propostas de reforma de uma organização que encaram como “anti-americana”. Terceiro, muitos dos que dependem e beneficiam da existência da instituição e que tentam esconder o óbvio: a absoluta incapacidade da ONU ter qualquer papel relevante no fim dos desastres humanitários em curso, ou no impedimento da prossecução de programas de armamento nuclear que são óbvias ameaças à paz internacional. Defendem por isso as sugestões de reforma, acreditando ou preferindo acreditar que delas virá a “salvação”.
A ONU é a organização contemporânea que supostamente corporiza o espírito kantiano da “paz perpétua”: uma liga de democracias sujeitas a uma lei internacional. Eis o que devia ser claro e aparentemente não é: a ONU é uma organização que não tem rigorosamente nada em comum com os princípios kantianos. No “Primeiro Artigo Definitivo para uma Paz Perpétua”, Kant estabelece que: “[T]he sole established constitution that follows from the idea of an original contract, the one on which all of a nation’s rightful legislation must be based is republican.”
O segundo artigo estabelece que a lei internacional só pode ser fundada numa federação de estados “livres” (as democracias liberais). Ou seja: para que um estado possa pertencer à Liga das Nações tal como foi pensada por Kant é necessário em primeiro lugar que seja uma democracia liberal, constitucionalmente organizado com base no princípio da liberdade sob a lei. A Carta das Nações Unidas não é uma adaptação deste princípio: é uma flagrante violação dos preceitos básicos sobre os quais Kant admitia a possibilidade de construção de uma ordem jurídica internacional.
Ainda que se admitisse, como princípio de compromisso, que a lógica kantiana só se aplicava ao Conselho de Segurança e não à Assembleia teríamos sérios problemas. Se a ONU conferisse assentos permanentes no Conselho de Segurança apenas a democracias liberais, isso significava a exclusão imediata desse conselho de países como a China ou a Rússia e a impossibilidade absoluta de admissão de países como o Egipto, a Nigéria, ou a África do Sul. Até um país como o Japão teria de se esforçar para provar que é mais do que uma democracia formal. Com a excepção da Alemanha, os restantes candidatos a novos membros do Conselho de Segurança só poderiam ser admitidos com assentos temporários, dependentes da verificação do respeito sistemático pelo princípio interno da liberdade sob a lei.
É evidente que não há qualquer hipótese de uma medida destas ser sequer considerada. A ONU ao “absorver o mundo”, absorveu também a lógica do mundo: a do realismo, democrático ou não, que faz com que cada governo aja na defesa do estrito interesse nacional (com algumas notórias excepções de ingenuidade e impulso suicidário). A lei internacional oscila hoje como sempre o fez, entre uma miragem perigosa e uma ameaça à paz e às democracias ocidentais e o espírito de Kant está certamente mais presente em organizações como a NATO ou o G7+1 (Rússia) do que na ONU, que se recusa a agir até para aplicar as medidas que ela própria aprova.
A ONU é um velho e gasto navio internacionalista, que foi metendo água pelos mares do mundo e que o tempo acabou por deixar encalhado na costa americana, de onde há quase um século atrás se fez ao mar, por entre os delírios ingénuos do presidente Wilson.
2004-12-07
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