2004-12-09

Mas

Um jornalista de uma televisão privada é destacado para cobrir uma notícia: a celebração de um contrato de produção de blindados austríacos que irá manter uma fábrica portuguesa a funcionar, pelo menos até 2009 e que de outro modo estava destinada a encerrar. O jornalista conclui a reportagem dizendo: “são boas notícias para o Ministro da Defesa mas interessam muito mais ao candidato Paulo Portas.”

Nem o ministro em questão, nem a fábrica mencionada, nem tão pouco os singulares veículos que lá serão produzidos fazem parte dos meus interesses quotidianos. O que me interessa é o remate da reportagem, mais especificamente a conjunção adversativa: o “mas”. Como conjunção adversativa que é, exprime oposição. Assim, de um lado temos um facto: as notícias, que são boas principalmente para os que trabalham na referida fábrica, o que não creio ser o caso do ainda Ministro da Defesa. Do outro lado do “mas” está uma opinião, um juízo valorativo que se opõe aos factos: a sugestão, que se depreende condenatória, de que o que move o político Paulo (por oposição ao governante Portas) é — horror dos horrores — a obtenção de votos. Ao rematar o assunto deste modo, o jornalista dá a entender que considera a motivação do político “rasteira” e que tal juízo de valor se sobrepõe em importância ao conteúdo da notícia. A viabilização da fábrica condenada e o reequipamento do exército português são relativizados; o que importa é “desmascarar” o propósito encoberto do político: obter votos.

Como explicar este comportamento recorrente? Há três hipóteses: ou se trata de uma manifestação de ignorância, ou de instrumentalização, ou de niilismo político.

Na primeira hipótese, o jornalista em questão desconhece um princípio comportamental básico em democracias representativas: sem votos não se governa e por isso o objectivo primeiro de qualquer político é efectivamente maximizar o número de votos. Não acredito que o jornalista tenha subitamente descoberto a existência de um mercado eleitoral, que funciona do mesmo modo que outros mercados, o que faz com que o comportamento dos políticos perante os eleitores não seja diferente do comportamento (por exemplo) das estações televisivas perante os telespectadores. No primeiro caso a distribuição de votos determina o equilíbrio representativo no parlamento; no segundo a distribuição de audiências determina a repartição das receitas publicitárias. Do “outro lado” de ambos os mercados estão as mesmas pessoas, que não precisam da “muleta moral” de qualquer jornalista para formarem a sua opinião sobre os políticos, mais do que necessitam de políticos que lhes condicionem as escolhas televisivas.

Na segunda hipótese, o jornalista “aproveita” a ocasião para, de forma implícita, manifestar a sua preferência política. Nesse caso o juízo valorativo torna-se personalizado e a conjunção adversativa passa a opor notícia a agenciamento partidário — o “mas” adquire estatuto de sigla: “movimento de apoio socialista”. Também é possível, mas não creio que seja isso.

A última hipótese é aparentemente a mais inocente, embora a considere a mais perigosa e também a mais verosímil. O uso jornalístico, generalizado e abusivo do “mas” trai um “espírito de missão”. O jornalista adquire o estatuto de “justiceiro” e usa o seu poder mediático como um agente provocador. O objectivo último não é o descrédito do político X em particular; é o descrédito generalizado da actividade política. O “mas” é o rastilho discursivo dirigido à turba: “o que eles querem é poleiro!”; “são todos iguais!”, etc. De cada vez que a situação se repete há sempre alguns políticos (os circunstancialmente poupados) que “acham graça”. Não percebem que é só uma questão de tempo até que chegue a sua vez de fazer de “boneco de feira”.

Aos agentes niilistas do “mas” só lhes falta uma coisa, pela qual, com ou sem consciência, abundantemente clamam: um Saint Just que lhes assine os “decretos de limpeza”, para tratar dessa “corja dos políticos” como eles “merecem”. O “mas” jornalístico é o veneno que lentamente se insinua na vida cívica e que em última análise destrói qualquer democracia.

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