2004-12-14

Painéis de S. Vicente (de dentro): sociedade de proprietários

Os portugueses distinguem-se de muitas das sociedades ocidentais pelo elevado número de famílias com “casa própria”. Trata-se de uma ilusão estatística. A esmagadora maioria dos portugueses não são proprietários imobiliários: "alugam" a casa ao banco, em contratos de trinta e até de quarenta anos. Do ponto de vista económico, o proprietário de um activo é o detentor dos direitos residuais. Quando os portugueses assinam um contrato de empréstimo para “aquisição de casa própria” normalmente efectuam uma hipoteca de garantia desse contrato. O banco torna-se o proprietário económico do bem; o detentor dos “direitos residuais” sobre a habitação. Quando o proprietário aparente decide, por exemplo, mudar de casa, “vende” a habitação actual e “compra” uma nova habitação. Na generalidade das situações, limita-se a transferir os direitos de propriedade do banco de um activo para outro.

O crédito bancário suporta também muito do consumo de bens duradouros. Reformas económicas sérias introduziriam instabilidade na economia, aumentando a taxa de desemprego natural, generalizando contratos de trabalho flexíveis (“precários” é o termo sindicalista). Os portugueses ajustariam as suas decisões de consumo à maior instabilidade e imprevisibilidade do rendimento permanente. Alugariam casas no mercado, em vez de alugá-las aos bancos, e em geral descontariam menos o consumo futuro do que o fazem hoje, o que teria um efeito provável de redução do endividamento líquido. Menos carros em “leasing”, menos frigoríficos e telemóveis “última geração”, menos férias a crédito. As instituições financeiras estariam entre as principais afectadas: o crédito de massas dispensa grandes avaliações de risco, há uma percentagem de “incobráveis” que é relativamente estável se o ciclo económico não provocar grandes flutuações em torno da tendência e, por feliz coincidência legislativa, os créditos incobráveis até nem são maus de todo do ponto de vista fiscal. Se a sociedade portuguesa se alterasse significativamente, bancos e outras instituições de intermediação financeira teriam de trabalhar muito mais, teriam de fazer “screening” a sério dos riscos de crédito, teriam de procurar identificar os negócios lucrativos do futuro, teriam maior pressão para inovar nos instrumentos financeiros. Mais maçadas.

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