2003-05-13

Felicidade e Razão O Valete Frates já dedicou uma entrada no blogue a este assunto, mas não resisto a comentá-lo eu também. Trata-se da coluna de Mário Pinto, no Público de hoje. O artigo repesca os ensinamentos de S. Tomás de Aquino:
Segundo S. Tomás - que se reclama de Aristóteles e de S. João Damasceno -, a paixão é definida como um movimento ou impulso do apetite sensível, em ligação com a representação de um bem (agradável) ou de um mal (desagradável). Nota importante do conceito de paixão é a sua irracionalidade, melhor, a sua anterioridade relativamente à razão.

[...]

Segundo S. Tomás, as paixões bem dominadas e ordenadas são magníficas energias. Assim, as paixões ditas consequentes, isto é, que seguem o juízo da recta razão iluminada pela fé, potenciam o mérito moral e espiritual e aumentam a força da boa vontade em prol das grandes causas. Foi neste sentido que Pascal disse: "Sem paixão, não é possível realizar nada de grande."

[...]

2. Destes princípios tomistas deve concluir-se que as paixões, não sendo em si mesmas nem boas nem más, não devem por definição ser extirpadas como vícios, mas devem, isso sim, ser submetidas à recta razão. Isto é: ser dominadas e orientadas, e dessa maneira colocadas ao serviço da virtude.

É necessário que (e nisso consiste precisamente a educação) a luz da (recta) razão se imponha aos nossos instintos e à nossa sensibilidade espontânea, para que esta não permaneça entregue a si mesma como sucede num animal que não possui a luz da razão.


É interessante notar como algumas destas afirmações podem, com alguma liberdade, ser comparadas a teses de autores contemporâneos. Por exemplo, com António Damásio, que no seu "O Erro de Descartes" diz que as emoções (que talvez se possam associar às paixões de Aquino) são essenciais para o raciocínio, pois fazem parte do mecanismo que nos permite lidar com o problema da explosão combinatória associada à resolução de todos os problemas, mesmo os mais triviais. Mas também com Steven Pinker, que no seu "The Blank Slate" ataca repetidamente, com toda a razão, as tentativas de suportar a moral na natureza humana. Ele distingue claramente entre causas próximas e causas últimas, pelo que consegue conjugar uma explicação biológica e evolutiva para a moral (causa última), com o lívre arbítrio e a responsabilidade pessoal (causa próxima). A relação pode neste caso ser feita, na minha opinião, se se considerar que as paixões de Aquino correspondem àquilo que no nosso comportamento é inato. Reconhecemos em nós tendências que têm com toda a certeza explicação biológica (e.g., a tendência para o adultério), mas isso não poderá servir nunca para considerar os comportamentos que decorram dessas tendências como apropriados ou, pelo contrário, como reprováveis. As questões morais têm, com toda a certeza, uma base biológica e evolutiva, mas tal facto de pouco ou nada nos ajuda no dia a dia, perante os dilemas morais que nos preenchem a vida. Os raciocínios morais pertencem a uma outra esfera.

Infelizmente o artigo de Mário Pinto termina com uma diatribe contra a técnica, que me parece muito pouco certeira:
Dirão alguns: reflexões muito velhas. Respondo eu: concordo inteiramente. Mas acrescento que são tão velhas como o homem, a sua dignidade racional e a sua problemática existencial. Filosoficamente, nós continuamos hoje com os mesmos problemas defrontados pela filosofia clássica e da escolástica. E essencialmente às voltas com as mesmas respostas. A maior diferença parece-me às vezes ser a de que os filósofos gregos e escolásticos não fugiam aos problemas e às respostas. Enquanto nós, hoje, homens que nos cremos muito evoluídos, questionamos e respondemos menos. Absorvidos com a técnica, limitamo-nos a um hedonismo prático, que simplesmente embrulhamos racionalmente com o cómodo relativismo epistemológico do pós-modernismo. Pois não é cómodo pensar que, nestas coisas, cada um tem a sua verdade? E que, visto que não é possível demonstrar irrecusavelmente uma verdade universal, todas as verdades são iguais e valem o mesmo? Ou seja, que a verdade de um vale tanto como a sua contrária de outro? Que felicidade mais cómoda! Juntamos dois em um: o regalo hedonista e a satisfação racional epistemológica, esta sim alegadamente de valor universal - a epistemologia anula a ontologia.

Creio que o nosso tempo necessita dramaticamente de mais e melhor filosofia. E portanto de mais e melhores filósofos. Mas a filosofia não está na moda... Ela só se cultiva no ritmo humano da reflexão racional e na pureza das intenções das consciências. Modo e ambiente estes que não são redutíveis às novas tecnologias nem aos ritmos e aos "bites" da comunicação moderna, cada vez mais submetidas ao lucro e aos sentidos.

Será que assim não corremos o risco de ficarmos homens muito poderosos tecnologicamente, epistemologicamente tranquilizados, sem ética e sem virtude - portanto sem espírito, isto é, homens desalmados?

Estas afirmações, em que a técnica é usada como justificação para o pós-modernismo e é acusada de estar cada vez mais submetida ao lucro e aos sentidos, são profundamente erradas. A técnica em si não está certa nem errada. Nem sequer se pode afirmar que a tecnologia moderna seja indutora de quaisquer comportamentos hedonistas. Dizê-lo é ignorar a natureza humana, que não precisa certamente de técnica para se revelar, e ignorar, por exemplo, que é a técnica, bem utilizada, que permite que muitos leiam a coluna de Mário Pinto no Público, e que me permite a mim escrever estas linhas, com toda a liberdade do mundo e sem pagar um cêntimo. Os problemas éticos modernos não são diferentes, na sua essência, dos problemas éticos do passado da humanidade, como Mário Pinto reconhece. Por outro lado, embora reconheça os perigos e partilhe dos receio de Mário Pinto em relação ao relativismo, não posso concordar com a sugestão de que o nosso tempo seja um tempo sem ética e sem virtude. Sou um optimista, talvez, mas suporto-me na realidade. Continua a haver guerras hoje, mas morre-se menos do que antes, há menos fome, há mais ajuda aos países e aos povos em apuros, há mesmo um comportamento geral das sociedades que me parece mais ético do que no passado. Estamos mal, mas muito melhor do que no passado. Talvez as tendências pós-modernistas recentes tenham alterarado muito mais o discurso do que a prática de cada um de nós. Talvez esta nossa sensação de que "as coisas nunca estiveram tão mal" não passe de um comum erro de perspectiva.

O artigo de Mário Pinto, muito interessante, deve ser comparado com o de João César das Neves. É a diferença entre a profundidade e o panfleto. Entre a ponderação e a afirmação gratuita. Veja-se:
Se falarmos de lixos tóxicos, de racismo ou de exploração laboral, aí não há qualquer piedade, nem para os actos nem para as pessoas. O nosso tempo não aceita estas coisas de forma nenhuma e persegue sem remissão quem as comete. Mas se falarmos de adultério, de evasão fiscal ou de homossexualidade, aí o legítimo respeito pelos envolvidos pretende anular a indiscutível desordem das acções. Nos primeiros males não há compaixão possível; nos últimos não há mal nenhum. O recente repúdio pela guerra transformou-se em ataque aos americanos, enquanto se desculpa o divórcio pelos divorciados. Seria como gostar da cegueira por amor aos cegos.

Não se podem tolerar todos os estilos de vida; muitos têm de ser repudiados.

O que se deve, mais que tolerar, respeitar e amar são todas as pessoas, qualquer que seja o seu estilo de vida. Mas a opinião comum diz exactamente o contrário disto.

O mais curioso é que esta confusão está agora a cair no extremo, penetrando no insólito. A intolerância impiedosa das pessoas verifica-se em acções cada vez mais inócuas, enquanto a benevolência culposa chega já a crimes de sangue. Quem sujar uma praia, fumar em recintos fechados ou tiver excesso de alcoolemia é tão repudiado quanto os nazis.

Mas um drogado, uma mãe que aborta ou quem defenda a eutanásia é, não só absolvido, mas visto como um herói.

João César da Neves continua sistematicamente a comparar homossexualidade com adultério... Confesso que em termos morais tenho muito mais dúvidas do que certezas. Não aceito o relativismo moral, e acredito numa moral absoluta, tal como numa verdade absoluta, por muito inalcançáveis que sejam ambas. No entanto, não posso deixar de pôr à prova racional as afirmações acerca de bondade ou maldade de determinados actos. E não consigo encontrar a mais pequena sombra de uma razão para censurar uma relação homossexual onde haja consentimento de ambas as partes. A mistura da homossexualidade com o adultério e o aborto é simples obscurantismo.

Enfim. João César das Neves será um liberal na esfera económica, mas está longe de ser um liberal no que respeita às relações humanas. É pena.

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