2003-05-04

Documento de Orientação para a Avaliação, Revisão e Consolidação da Legislação do Ensino Superior Na globalidade, o documento parece apontar na direcção certa, mas parece-me demasiado tímido. Algumas observações:

  1. A minha primeira observação diz respeito à vontade expressa pelo documento de atingir consensos. Sinceramente, não julgo que seja esse o caminho. Os consensos levam normalmente a decisões tímidas e, muitas vezes, contraproducentes. Precisa-se de coragem e convicção para governar. Diálogo e abertura não são o mesmo que obsessão pelo consenso.
  2. Diz o documento que "o compromisso principal que se pretende garantir é o de assegurar aos estudantes, não apenas o direito à educação, mas o direito a uma educação de qualidade, que corresponda às suas expectativas e direitos." Julgo que é um erro pôr as coisas nestes termos relativamente ao ensino superior. O direito ao ensino deve terminar no secundário. O ensino superior é por natureza elitista (em termos de capacidades intelectuais). O que se deve tentar garantir é a igualdade de oportunidades no acesso à educação superior. Isso consegue-se, como já referi anteriormente, através de financiamentos directos aos estudantes que precisem e que mereçam. Fundamental é garantir a mobilidade social, e aí o principal trabalho a realizar está no ensino não-superior.
  3. "O ensino superior deve estar concebido em função do estudante, e tomar em atenção aquilo que ele pode e deve aprender, isto é, aquilo que pode e deve aprender-se." Esta frase dá uma enorme machadada na exigência que é fundamental que exista no ensino superior. Naturalmente que não se pode exigir o impossível, mas isso é tão óbvio que a presença desta frase só pode ser interpretada como significando que a exigência do ensino deve ser nivelada por baixo, de modo a que esteja ao alcance de todos os estudantes. Isso é um erro grave. Se neste momento o ensino superior já é muito menos exigente que há uns anos, que seria se o nivelamento se começasse a fazer realmente por baixo?
  4. "Neste sentido, o paradigma da aprendizagem corresponde a uma nova atitude pedagógica, que encara os estudantes como participantes activos nos processos educativos, e não apenas como consumidores passivos de ensino." Mais uma frase com múltiplas interpretações. É evidente que não há aprendizagem sem a participação activa do estudante, pelo que não deve ser a isso que o documento se refere. A participação aqui referida deve ser nos órgão de gestão da escola, particularmente nos conselhos pedagógicos, pois o documento propõe que a paridade discentes e docentes deve ser mantida. Mais uma vez é um erro grave. A participação dos estudantes nos órgão de gestão da escola deve ser consultiva. Os actuais, e absurdos, métodos e calendários de avaliação, que tão nefastos são para discentes e docentes, decorrem naturalmente da paridade actualmente existente, e são um factor considerável de atraso das nossas instituições de ensino superior.
  5. "Se, por opção constitucional, vivemos hoje numa época de autonomia das instituições de ensino superior, o Estado não pode, e não deve, abdicar de reflectir, orientar e, eventualmente, decidir estas questões." Aqui se mostra a faceta mais intervencionista do governo. A autonomia universitária é fundamental, e não é razoável que sofra ataques por parte de quem se esperava mais empenho em defendê-la do que pelos governos de esquerda. Mas talvez este governo tenha realmente pouco de liberal.
  6. A "abertura de portas à profissionalização da gestão" bem como a intenção de internacionalizar a avaliação das escolas e de deixar às escolas a responsabilidade de fixar os processos de selecção de estudantes são excelentes medidas, que se esperavam há muito tempo. Com efeito, as avaliações actuais são totalmente inúteis, não apenas porque os seus resultados não são suficientemente divulgados nem comparados, mas sobretudo pelo facto de o ambiente universitário português ser tão pequeno que não dá quaisquer garantias de idoneidade nos resultados das avaliações.
  7. O documento aponta uma série de intenções louváveis em matéria de financiamento, mas o que é facto é que as suas propostas pouco mudam relativamente ao modelo actual. O financiamento continua a ser feito no seu grosso às instituições, e só parcialmente aos estudantes. Esta timidez leva a que muitos comentadores tenham observado, com alguma pertinência, que estas propostas iriam dificultar a vida aos mais necessitados, contribuindo pois para o aumento da desigualdade de oportunidades. O problema, no entanto, não é o aumento das propinas, mas sim o facto de as propinas não serem totalmente liberalizadas, passando o estado a financiar essencialmente os estudantes, revolucionando o modelo actual de bolsas, residências universitárias (onde estão elas?), empréstimos, etc.
  8. Uma excelente medida, vinda aliás de uma proposta do tempo do governo de Guterres, é a de acabar com a contratação de docentes não-doutorados. Será uma medida verdadeiramente importante para a credibilização do nosso ensino superior. Além disso, terá um efeito secundário muito importante: acabar com os mestrados e doutoramentos que se eternizam, pois o estudante graduado não sentirá a falsa segurança de ter um emprego garantido na sua instituição.
  9. "As exigências e requisitos para a criação de cursos serão idênticas para todo o sistema de ensino superior, definidas de um modo geral e objectivo, competindo ao Estado, na sua função reguladora, verificado que seja o cumprimento das exigências decretadas, promover o registo dos cursos." Não é claro se isto significa retirar às ordens o papel que têm tido de acreditação de cursos. Se é essa a intenção, então é uma péssima ideia. De facto, o estado não pode ser regulador das suas próprias instituições. Melhor seria que estabelecesse critérios para a acreditação pelas ordens, exigindo por exemplo um mínimo de presença internacional nas comissões de acreditação.
  10. É de louvar a intenção de aumentar a responsabilidade dos reitores e presidentes, bem como dos órgão de gestão. Também é sensata a abertura a que a direcção das escolas passe a ser nominal, evitando-se a diluição de responsabilidades pelos membros de um conselho directivo.
  11. Relativamente aos conselhos das escolas, com participação da sociedade civil, o documento não propõe senão um papel consultivo, o que os poderá tornar rapidamente irrelevantes.
  12. "Os órgãos colegiais terão obrigatoriamente uma participação maioritária de docentes e investigadores doutorados no caso das universidades, e de mestres e doutores no caso dos institutos politécnicos, excepto os Conselhos Pedagógicos cuja composição entre discentes e docentes deve ser paritária." A excepção para os Conselhos Pedagógicos é uma das maiores cedências deste documento à demagogia, pelas razões que já apontei. No documento não é claro se a maioria dada aos docentes, nos restantes órgãos, é suficiente para evitar que os docentes fiquem minoritários face a uma coligação entre discentes e funcionários. A ser assim, esta medida, já de si insuficiente, de pouco ou nada servirá.
  13. "O Estado reafirma o seu compromisso em aumentar o investimento por estudante no ensino superior, assim como assegura a todos os estudantes que pretendam frequentar o ensino que não deixarão de o fazer por insuficiências financeiras." É pouco. É muito, muito pouco. É necessário um apoio muito mais efectivo a quem precisa, o que só se conseguirá deixando de financiar directamente as instituições, o que corresponde a financiar por igual todos os discentes. Sabendo-se que o perfil socio-económico dos estudantes do ensino superior é muito diferente do da sociedade em geral, só se pode concluir que o sistema actual financia mal e porcamente alguns que precisam e muitos que não precisam.
  14. As políticas de agravamento de propinas no caso de não-aproveitamento não são desprovidas de sensatez. Porém, melhor seria se não fossem as propinas a variar, mas sim o financiamento do estado ao estudante, o que só seria possível com a liberalização das propinas e com a mudança radical do peso do financiamento estatal das instituições para os estudantes. Essa mudança iria, além do mais, contribuir para uma muito maior responsabilização por parte dos estudantes, que passariam também a dar mais valor ao ensino recebido. Isso levaria inevitavelmente a uma maior exigência dos estudantes no que diz respeito à qualidade de ensino e investigação, coisa que actualmente não se verifica (com efeito, os estudantes são de uma enorme passividade relativamente as estas questões).
  15. "Que nenhum jovem que deseje frequentar o ensino superior deixe de o fazer por insuficiências financeiras." Dou o meu amén a esta frase embora clarificando a sua redacção: "Que nenhum jovem que deseje e tenha capacidade para frequentar o ensino superior deixe de o fazer por insuficiências financeiras".

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