2003-05-27

De novo The Blank Slate Tenho vindo nos últimos tempos a ler o The Blank Slate: The Modern Denial of Human Nature, de Steven Pinker. É um livro absolutamente essencial, uma obra de um enorme fôlego e de uma erudição espantosa, e é, também, uma obra extremamente polémica. Talvez estranhamente polémica, pois toda a sua tese, de que a natureza humana existe, de que os genes determinam em larga medida o que somos enquanto indivíduos, está suportada com firmeza numa quantidade considerável de ciência. Mas é exactamente esse o problema. Essa ciência, que procura factos, que usa a experiência para comprovar ou falsificar teorias, é acusada de imoral. Essas acusações são totalmente desprovidas de sentido, como Pinker demonstra com elegância, mas nem por isso deixam de ser feitas por uma pseudo-ciência pós-modernista, negadora da existência de verdade, mas que crê em algumas verdades que considera absolutas. A primeira é justamente que não há uma verdade, mas várias verdades subjectivas. A veracidade desta afirmação é posta em causa por si própria. A segunda é que, sendo toda a ciência uma construção humana, as suas teorias são necessariamente produto dos cientistas e não da realidade observada, donde se conclui facilmente que se essas teorias não corroborarem as nossas opções políticas, não são estas que estão erradas, mas sim as teorias, independentemente da sua corroboração experimental.

Pinker desmonta habilmente estes argumentos e, de passagem, no curto capítulo "The Sanctimonious Animal", faz algumas afirmações extremamente interessantes acerca da moral. Em capítulos anteriores Pinker demonstra que o conhecimento biológico da mente não leva necessariamente ao nihilismo. Pelo contrário, esse conhecimento informa-nos para melhor fazermos os nossos "raciocínios morais". Pinker alerta para o facto de que a moralidade é um produto da mente, parte dela determinada geneticamente, e como tal sujeita a erros sistemáticos, que compara às ilusões de óptica. Algo a que chama "ilusões morais". Pinker reconhece que há alguns actos que são reconhecidamente imorais, tais como a violação ou o assassínio. Mas argumenta que, em relação a outros actos, as nossas intuições morais nos deixam ficar mal. Refere um pequena estória, que não resisto a transcrever, e que deixa os nossos sentidos morais confundidos, procurando razões, inexistentes, para poder classificar como imoral um acto que nos repugna:
Julie and Mark are brother and sister. They are traveling together in France on summer vacation from college. One night they are staying alone in a cabin near the beach. They decide that it would be interesting and fun if they tried making love. At the very least it would be a new experience for each of them. Julie was already taking birth control pills, but Mark uses a condom too, just to be safe. They both enjoy making love, but they decide not to do it again. They keep the night as a special secret, which makes them feel even closer to each other. What do you think about that; was it OK for them to make love?

Esta estória demonstra claramente que há uma parte do nosso "sentido" moral que não está sujeita à razão. Enquanto animais racionais, procuramos desesperadamente racionalizar uma decisão que tomámos sem recurso à razão: que o incesto é errado, sempre. Estas ilusões morais podem levar à censura de actos que em bom rigor não merecem ser classificados como imorais.

Excluindo os psicopatas, desprovidos parcial ou totalmente de consciência moral, todos concordamos em considerar o assassínio como imoral. Mas que dizer da homossexualidade? Aparentemente, para muitas pessoas, entre as quais não se incluem naturalmente os próprios homossexuais, a homossexualidade é geradora de ilusões morais. Causa-lhes um sentimento de repulsa que as leva a considerá-la como imoral. As tentativas de racionalização dessa ilusão são variadas, tais como argumentar que a homossexualidade não é "natural". Esses argumentos não têm qualquer validade. Em primeiro lugar porque, embora a moralidade humana tenha como causa última a natureza humana e o processo evolutivo, não as tem como causa próxima. Seria como argumentar que o que eu escrevo neste blogue se deve aos disparos de neurónios no meu cérebro. É verdade como causa última, mas é falso como causa próxima: escrevo o que escrevo porque quero. O argumento, além do mais, é extremamente frágil pela simples razão de que, se alguma vez se vier a demonstrar a origem genética ou pelo menos biológica da homossexualidade, os mesmos que a condenavam se verão obrigados a aceitá-la. (Note-se que, de uma forma igualmente errónea, tem-se tentado demonstrar que a homossexualidade não é errada tentando a outrance provar que ela é natural.) Mas de longe as explicações mais perigosas para a moralidade são as que recorrem à revelação divina. Se uma putativa revelação divina do 6º mandamento, "não matarás", até pode ter como consequência positiva uma aderência maior do crente à norma moral de que assassinar é errado, já a presença na bíblia de uma classificação explícita da homossexualidade como pecado condenou muita gente no passado, e continua a condenar no presente, a uma verdadeira sub-vida, plena de sofrimento psicológico e, por vezes, de sofrimento físico. É verdade que hoje em dia a posição católica sobre a homossexualidade se moderou. Diz o Catecismo católico que:
A homossexualidade designa as relações entre homens e mulheres que sentem atração sexual, exclusiva ou predominantemente por pessoas do mesmo sexo. A homossexualidade reveste-se de formas muito variáveis ao longo dos séculos e das culturas. A sua génese psíquica continua amplamente inexplicada. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves, a tradição sempre declarou que “os actos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados”. São contrários à lei natural. Fecham o acto sexual ao dom da vida. Não procedem de uma complementaridade afectiva e sexual verdadeira. Em caso algum podem ser aprovados.

Um número não negligenciável de homens e mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente enraizadas. Esta inclinação objectivamente desordenada constitui, para a maioria, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito compaixão e delicadeza. Evitar-se-á para com eles todo sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar a vontade de Deus em sua vida e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor às dificuldades que podem encontrar por causa de sua condição.

As pessoas homossexuais são chamadas à castidade. Pelas virtudes de autodomínio, educadoras da liberdade interior, às vezes pelo apoio de uma amizade desinteressada, pela oração e pela graça sacramental, podem e devem aproximar, graduais e resolutamente, da perfeição cristã.


Catecismo da Igreja Católica Apostólica Romana; Castidade e Homossexualidade, 2357 a 2359

Lá está a condenação inequívoca, apesar da declaração piedosa de compaixão perante os homossexuais. Se os homossexuais precisam de compaixão, o que é duvidoso, será quando muito pela forma como são tratados, inclusivamente pelo Catecismo católico.

É claro que não posso aqui advogar que a moralidade se deve basear exclusivamente na razão. Em primeiro lugar porque pelo menos os axiomas básicos do edifício (e.g., "o sofrimento é errado"), não têm naturalmente um explicação ou demonstração racional. Em segundo lugar porque, como o século XX demonstrou à exaustão, a razão tem os seus limites. Não reconhecer os limites da razão pode ser ainda mais perigoso que não usar a razão de todo.

Não tenho naturalmente uma resposta definitiva sobre este assunto. Ao contrário das verdades científicas, as "verdades morais" não são passíveis de ser testadas empiricamente. Vão surgindo lentamente, de discussões e debates de séculos, de lentas evoluções das sociedades. As posições moralmente conservadoras são muitas vezes defensáveis, dados os limites da razão, mas as posições mais moralmente progressistas também o são frequentemente, particularmente quando a simples inércia é por si só causadora de maior sofrimento do que qualquer consequência não antecipada da mudança. A questão da homossexualidade é claramente um destes últimos casos. Não se vislumbra que problema poderá surgir da sua não-condenação, mas vê-se claramente que vantagens tal traria para uma quantidade enorme de pessoas a quem se negou a normalidade. Por isso mesmo, estou convicto de que a igreja católica acabará por abolir a condenação da homossexualidade do seu catecismo.

Outros dilemas morais surgem associados à homossexualidade. Devem ou não os homossexuais ser autorizados a adoptar? Confesso que neste caso tenho convicções muito menos fortes. A razão para as minhas dúvidas é apenas uma: não estão em jogo apenas os membros do casal homossexual, mas também, e sobretudo, a criança adoptada. Se acima disse que os homossexuais tinham direito à normalidade, não o disse no sentido estatístico do termo. A homossexualidade parece ser uma tendência minoritária e como tal estatisticamente "anormal". Terá esse simples facto uma influência nefasta na vida da criança? Confesso que não sei. Mas ainda que se venha a considerar como moralmente aceitável a adopção nestas circunstâncias, deverão tais adopções ser incentivadas? Também não sei.

O Valete Frates! respondeu, há já algum tempo, a uma entrada minha neste blogue sobre um artigo de João César das Neves onde se comparava homossexualidade e adultério. As observações acima servem, de alguma forma, de resposta. Mas há algo que gostaria de acrescentar. Na resposta do Valete Frates! (tanto quanto me lembro, pois não tenho já acesso a ela, dado o atraso desta minha resposta), afirma-se a certa altura que a minha aceitação da homossexualidade implicaria naturalmente a aceitação do adultério. Não me parece que se possa tirar semelhante conclusão. No adultério há pelo menos três de indivíduos envolvidos. Pode até haver mais, se existirem filhos filhos. Numa relação adúltera, o conjuge do(a) adúltera está a ser traído na sua confiança. Enquanto o casamento, formalizado ou não, incluir um comprometimento de fidelidade, e julgo que o incluirá sempre, o adultério será imoral.

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