2003-06-17

O Logro da "Democracia Participativa"?

José Manuel Fernandes escreve no público acerca da democracia representativa e da "democracia participativa". Concordo no essencial com as suas palavras, mas julgo que o artigo vai um pouco longe demais.

JMF parece negar o papel importantíssimo que têm as associações espontâneas na sociedade civil, independentemente da sua representatividade e democracia interna. Se é verdade que estas associações, a que JMF chama "movimentos sociais", não são a sociedade civil, também é verdade que são uma parte importante dela. É evidente que estas associações não podem ter poder, pois, como JMF diz, isso seria uma total perversão da democracia. Mas nada há de errado em que tentem influenciar o poder: o lobbying, desde que feito às claras, só pode servir mas estimular a discussão e melhor a informação que os nossos eleitos têm para decidir, quer se trate de representantes em órgãos legislativos, quer se trate de membros de órgão executivos. Para que não haja dúvidas, digo isto com activista convicto e associado da ACA-M, ou Associação de Cidadão Auto-Mobilizados, que tem tido, julgo eu, um papel relevante a levantar bem alto o problema da sinistralidade rodoviária em Portugal. Esta associação não participou, e ainda bem, no FSP (Fórum Social Português), justamente pelo seu carácter de verdadeira associação de cidadãos, totalmente ortogonal às organizações partidárias ou partidarizadas. Digo-o com à vontade, pois entre os seus membros se encontram associados de todos os espectros políticos. O mesmo já não posso dizer da LPN (Liga para a Protecção da Natureza), que participou oficialmente no FSP, e da qual deixarei em breve de ser sócio.

Concordo com JMF quando ele diz que não há nenhuma razão para que as opiniões de associações e "movimentos sociais" sejam mais ouvidas que a voz do cidadão singular, pelo menos enquanto não for evidente a sua representatividade. É justamente aqui, de resto, que eu julgo que a nossa democracia está doente. Diria mesmo mais: sempre esteve doente. Porque o cidadão individual é simplesmente ignorado pelo poder. Para o ilustrar, deixem-me descrever uma experiência que tive há uns anos, numa sessão pública da CML, quando ainda João Soares era presidente.

Nessa altura, e presumo que ainda hoje, havia uma sessão pública mensal das reuniões do executivo da CML. Uma vez que sempre acreditei que uma participação activa dos cidadãos na vida pública é fundamental numa democracia plena, com as nuances que apresentei acima, decidi participar numa dessas sessões. Se bem me lembro, realizavam-se numa das terças-feiras do mês, talvez numa das quartas. A sessão tinha lugar à tarde, mas era obrigatória a inscrição prévia dos cidadãos que quisessem interpelar o executivo. Essa inscrição realizava-se pela manhã, e obrigava à indicação dos assuntos a que o cidadão aludiria na sua intervenção, alegadamente para que os "vereadores e presidente pudessem estar preparados para responder". Na prática significava não só evitar as perguntas embaraçosas, como também levava a que os cidadãos que efectivamente participavam nas sessões públicas da CML fossem geralmente cidadãos ociosos, muitas vezes reformados e por vezes mesmo com perturbações e evidente falta de bom senso.

Chegada a hora da sessão, entrei e sentei-me junto com o restante público. Não me lembro exactamente quanto tempo passámos a ouvir votações acerca de assuntos a que os vereadores se referiam pelo número na ordem de trabalhos, à qual não tínhamos acesso. Talvez tenhamos estado uma hora a ouvir os vereadores votarem números: “número 57, quem vota a favor? quem vota contra? quem se abstem?”. Só muito raramente, quando o assunto era polémico e dava azo a alguma discussão, conseguíamos inferir vagamente do que se tratava.

Finalmente chegou o período das intervenções do público. Não intervim, até porque não pudera prescindir da minha manhã para me inscrever. Limitei-me a assistir a um arrastar de personagens absurdos que faziam discursos intermináveis e perguntas absurdas a vereadores enfastiados que respondiam cheios de paternalismo. Uma total perda de tempo e um total aviltamento de uma ideia virtuosa.

A democracia formal limita-se ao voto, mas uma democracia real implica respeito pelo cidadão. Implica dar-lhe a possibilidade, não de decidir, mas de ser ouvido. Por isso digo que a nossa democracia está, e sempre esteve, doente. Porque o cidadão é tratado como um imbecil. Porque presidentes de câmara, como o foi João Soares, e mesmo presidentes de juntas de freguesia, como o foi Vitor Gaio, em S. João de Deus, não se dignam sequer a responder a cartas dos cidadãos.

Note-se que estou a falar da governação ao nível mais atómico, onde os contactos com os cidadãos são mais fáceis e necessários. O que poderá justificar que uma câmara municipal planeie durante anos a recuperação de um jardim, por exemplo, sem que os habitantes da zona o saibam? O que poderá justificar que não tenham acesso atempado ao projecto e a possibilidade de apresentar as suas críticas quando ainda há a possibilidade de elas serem levadas em conta, caso sejam pertinentes? É por não compreender, por não aceitar esta ideia de que a democracia seja sempre e em qualquer circunstância uma espécie de ditadura limitada no tempo, que aceitei, agradecido, o convite que me foi feito para participar como independente nas listas do PSD para a Assembleia de Freguesia de S. João de Deus, onde poderia ter, talvez, a possibilidade influenciar um pouco a forma como os cidadãos são tratados.

Será que dar voz ao cidadão, ou melhor, será que demonstrar simples consideração pelo cidadão corresponde a apoiar a ideia de "democracia participativa"? Não, de modo algum! Pelo menos na acepção que JMF dá à expressão. E isso acontece porque não proponho que o poder esteja directamente nas mãos dos cidadãos individuais ou nas suas associações, mas sim nos seus representantes eleitos. Mas será que podemos chamar verdadeiramente democrática a uma sociedade onde os eleitos simplesmente ignoram os cidadãos, tratando-os com condescendência e paternalismo? A resposta é um enfático não. Democracia implica capacidade de decidir. Por vezes até capacidade de decidir convictamente contra a vontade de todos. Isso implica a coragem de um Tony Blair, afrontando manifestações e impopularidade. "I don't see impopularity as a badge of honour", disse, enquanto persistiu, convicto, no apoio ao ataque ao regime de Saddam Hussein. Mas há uma diferença enorme entre decidir corajosamente e ignorar os cidadãos. O exercício do poder democrático implica a possibilidade de decidir contra a vontade de alguns, ou mesmo da grande maioria dos cidadãos. Mas não significa necessariamente que as opiniões desses cidadãos não mereçam respeito e resposta. Nem que os detentores do poder possam deixar de informar convenientemente os cidadãos.

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