Nós não podemos aceitar o sofrimento de Ali, da mesma forma que não aceitamos o sofrimento das vítimas da barbárie do 11 de Setembro. Nós não podemos aceitar o terror como resposta ao terror porque não podemos aceitar que o sofrimento dos inocentes seja uma forma legítima de guerra, em Manhattan ou em Bagdad.
Será o que parece? Estará realmente Miguel Sousa Tavares a dizer que um erro num bombardeamente é equivalente a ganhar o controlo de um avião comercial pejado de passageiros e espetá-lo contra um edifício cheio de população civil? A guerra equivale-se ao terrorismo, para ele?
Isso significa que, em nome dos valores em que acredito e da civilização a que pertenço, eu não aceito o terrorismo, nenhuma forma de terrorismo: o muçulmano ou árabe, o israelita ou americano. Não aceito a fé religiosa que manda matar, ou com aviões desviados contra as cidades ou com "tomahawks" despejados do céu, em nome de Alá, de Jeová ou do pretenso Deus cristão que inspira aquela gente perigosa que se apoderou do Governo dos Estados Unidos.
As dúvidas dissipam-se. Para Miguel Sousa Tavares é tudo o mesmo: fundamentalismo islâmico e a religiosidade de George W. Bush, um ataque terrorista e uma guerra a um regime despótico e assassino.
Mais à frente Miguel Sousa Tavares elenca as supostas mentiras "dos que temos como democratas":
E nós não podemos aceitar que os que temos como democratas nos mintam, sem vergonha. Que nos mintam sobre a ameaça terrorista do Iraque, que nos mintam sobre as suas armas de destruição maciça,
Relativamente às ligações à Al-Qaeda, é verdade que os indícios eram, no mínimo, pouco convincentes. Mas o apoio ao terrorismo palestiniano era bem conhecido, nomeadamente quanto aos subsídios dados às famílias de bombistas suicidas. Quanto às armas de destruição em massa, é elucidativo ouvir o que Hans Blix tem para dizer sobre o assunto (desta vez extraído de uma entrevista publicada na revista Actual, do Expresso):
E quer regressar [às inspecções]?
Sim, claro. Esse é o nosso trabalho. Ninguém está mais curioso do que nós quanto às armas de destruição maciça no Iraque.
[...]
Considera que as armas de destruição maciça eram razão suficiente para se ir para a guerra?
(Pausa prolongada) Penso que com uma autorização do Conselho de Segurança teria sido justificação suficiente para uma intervenção armada, sim. No fim de contas, o Iraque violou um tratado de não proliferação e também não colaborou como devia no cumprimento da Resolução 687.
Mas Miguel Sousa Tavares continua:
que nos mintam sobre a população civil usada como escudos pelo exército iraquiano,
Aqui tem razão. Não me parece que isso tenha acontecido.
que nos mintam sobre "os milhares de civis" abatidos a tiro pelas milícias iraquianas quando pretenderiam fugir de Bassorá,
Não me lembro de ninguém ter falado em milhares de civis abatidos nestas circunstâncias. Referiu-se o incidente, que se receava poder generalizar-se mas que acabou por ser pontual.
que nos mintam sobre os prisioneiros de guerra da coligação supostamente torturados e abatidos à queima-roupa e que afinal aparecem libertados e sem maus tratos alguns,
A administração americana lançou um aviso forte a esse respeito, relativamente à exibição televisiva dos prisioneiros de guerra, mas não me lembro de ter afirmado nunca que tinham havido torturas. Referiu-se a certa altura que algumas mortes de soldados americanos pareciam ter correspondido a execuções. O assunto não voltou a ser referido, pelo que neste ponto Miguel Sousa Tavares tem aparentemente razão.
que nos mintam sobre o respeito que lhes merece a liberdade de imprensa e depois bombardeiem sem pudor as estações de televisão que lhes contrariam a propaganda,
A mistura entre o ataque às emissões da televisão iraquiana, correia de transmissão de um regime totalitário, e ao Hotel Palestina, presumivelmente devido a um erro, é pouco honesta.
que nos mintam quando prometem levar ao Iraque a liberdade e a democracia e depois lhes pretendam impor dirigentes fantoches sem qualquer credibilidade interna e chefiados por um general americano que também fornece a componente essencial das bombas que mataram os que ele agora pretende administrar,
Aqui Miguel Sousa Tavares antecipa-se à realidade. Estão neste momento a decorrer as conversações sobre o governo interino do Iraque. Esperemos para ver.
que nos mintam quando prometeram levar água, comida e remédios ao Iraque e afinal se constata que não tinham qualquer plano para assistir as vítimas da guerra que desencadearam
Começaram já a desembarcar equipamento e medicamentos em alguns hospitais de Bagdad. Tudo leva a crer que a situação começa a estar sob controlo. Recordo que a guerra começou há menos de um mês...
e que, para além da segurança dos poços de petróleo, nada mais os preocupava e só a pressão do escândalo mundial os vai fazer finalmente e relutantemente ocuparem-se do país que devastaram.
Não é verdade. Essa intenção foi manifestada desde o início. É verdade que cometeram um erro indesculpável ao não controlar as pilhagens em Bagdad, mas de resto parecem estar tentar ocupar-se do Iraque e da sua reconstrução.
Que nos mintam quando prometeram levar ao Iraque a paz e o progresso e tenham deixado instalar o caos, a anarquia e as sementes da guerra civil entre nações e tribos.
Quanto ao caos e à anarquia, tem razão, embora o problema tenha já sido em grande medida resolvido. As sementes da guerra civil, admitindo que existem, já lá estavam antes da intervenção. Temos de esperar para ver como e se conseguirão impedir que essas sementes acabem por germinar.
Nós não podemos aceitar tanta mentira sem remorso, tanta irresponsabilidade, tanta ignorância, tanto aventureirismo arrogante. Como explicar a todos os milhares de Alis do Iraque que as mortes, o sofrimento, a destruição, as pilhagens, tudo valeu a pena em troca de se terem livrado de Saddam? Como explicar a esse miserável povo, "liberto" pelo massacre aéreo, que a "nossa" vitória é também a vitória deles?
Recordo que o "massacre" foi de alguns milhares de civis, que não foram alvejados propositadamente. É necessário manter os números em proporção. Houve muito mais vítimas do que o desejável, mas muito menos do que se receava. Ninguém pode dizer que estas mortes se justificaram. Mortes de civis numa guerra não se justificam. Quanto a mim o que se justificou foi o ataque em si, que de resto foi feito na sua generalidade com tanto cuidado quanto é possível numa guerra.
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