2005-01-14

Os justiceiros

As televisões portuguesas estão cheias de "justiceiros-jornalistas", que vêem a sociedade como uma enorme e permanente conspiração, orquestrada por entidades ocultas, altamente inteligentes e organizadas, que controlam e escondem a "verdade" aos cidadãos, porque "não lhes convém". Consequentemente, assumem que a sua obrigação primordial é "denunciar", "alertar" e expor os "interesses escondidos". Na generalidade dos casos não lhes ocorre que se limitam a substituir as suas obrigações profissionais pela prossecução de uma agenda política particular. Noutros, o uso da profissão como disfarce político é perfeitamente intencional. Como numa sociedade plural coexistem múltiplas agendas políticas divergentes e por vezes antagónicas, os "justiceiros" encontram sempre abundante evidência da "conspiração em curso" na conduta dos "justiceiros" aderentes às outras causas políticas.

Há "justiceiros" noutras profissões (cf. Vergonhas, mais abaixo nesta página) e a variante jornalística existe também nas rádios e nos jornais. Mas a sub-espécie televisiva é especialmente perigosa por estar presente diariamente nas casas da generalidade dos portugueses. O "justiceiro-jornalista" televisivo vive numa batalha épica e imaginária contra o Mal, onde obviamente não se pode limitar à singela tarefa de "informar": tem de corrigir o mundo. Por isso já não é possível ver uma entrevista ou um debate sem a constante intromissão e censura do "justiceiro" de ocasião. Quando ouve o que não lhe agrada interrompe desabridamente, manda calar ou fala por cima. Na batalha fictícia que se trava na sua cabeça é a única conduta possível: trespassar o peçonhento monstro da mentira, para "libertar" a verdade. O “justiceiro” televisivo responderá que não é assim; que lhe cabe “questionar e ser crítico”. Na interpretação benigna, não se apercebe que ao misturar a sua opinião com a informação, ou simplesmente ao substituir a segunda pela primeira, impede os cidadãos precisamente de exercerem o seu juízo crítico. Primeiro, porque os impossibilita de acederem a algo mais próximo de factos, com o mínimo possível de "filtragens opinativas"; segundo, porque ataca a própria noção de verdade, em nome da qual diz agir, ao reduzir tudo e todos a “opiniões relativas”. Na interpretação maligna, o "justiceiro" sabe disso perfeitamente e trata-se de uma acção deliberada e destrutiva, não de inépcia ou de inconsciência.

Muitos deles não têm grande escolha, são "instruídos" para agirem desse modo: são extensões por via auricular de um "justiceiro" remoto. Pelo seu carácter omnipresente ninguém como eles contribui tanto para o descrédito da política e para o ambiente de mal estar social. A inexistência de uma tradição cultural de civilidade, a pobreza crónica dos portugueses e a sensação que "a culpa disto tudo tem de ser de alguém" são a gasolina. O "justiceiro-jornalista" é o fósforo aceso.

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