Charles Duelfer foi o Conselheiro Especial do DCI (Director of Central Intelligence) da CIA encarregue de investigar a existência de armas de destruição maciça no Iraque à altura da ocupação americana. No final de Setembro, o
relatório Duelfer resumindo as conclusões da investigação foi revelado ao público.
O relatório tornou-se rapidamente conhecido como o "no WMD's report", por apontar para a improvável existência de armas de destruição maciça à altura da ocupação militar anglo-americana. No entanto, o mesmo relatório revelava outros factos, tão ou mais importantes, mas que foram aparentemente merecedores de pouca atenção por parte dos jornalistas (em particular pelos europeus).
Refiro-me aos elementos relativos ao programa Oil for Food, introduzido em 1996 e gerido pelas Nações Unidas. Este programa permitia ao Iraque exportar limitadamente algum petróleo em troca de importações de bens alimentares e medicamentos. De acordo com os elementos de informação já disponíveis, este programa tinha-se tornado, à altura da deposição de Saddam Hussein, num gigantesco esquema de corrupção, tornando efectivamente inúteis as sanções económicas anteriormente impostas pela mesma ONU.
Com base nos documentos iraquianos obtidos após a ocupação em 2003, estima-se que cerca de 11 biliões de dólares tenham sido desviados para contas bancárias do governo iraquiano. Estes dinheiros serviram para financiar o opulento modo de vida da clique dirigente durante os ?anos difíceis? das sanções, bem como para reequipar as forças armadas iraquianas. Dos 11 biliões de dólares, cerca de 7,5 biliões resultaram de receitas de "protocolos" ilegais de venda de petróleo. Da lista de 248 empresas beneficiárias destes contractos constam empresas da Rússia (35), dos Emiratos Árabes Unidos (12), da França (8), da Síria (7), dos EUA (4), da China, da Ucrânia e da Turquia, entre outros.
Cerca de 2 biliões resultaram directamente de fraudes no âmbito do programa da ONU: uma
cascata de dinheiro foi distribuída pelo governo iraquiano, sob a forma de vouchers de petróleo, a título de subornos internacionais aos "amigos do regime". Entre esses beneméritos desinteressados surgem os partidos comunistas russo, bielorusso e eslovaco, o embaixador nigeriano no Iraque, uma tal de Associação de Amizade França-Iraque e um "Mr. Sifan". Este sujeito é, nem mais nem menos, Benon Sevan, o ex-responsável das Nações Unidas pelo programa Oil for Food. O relatório Duelfer é taxativo neste ponto: a lista dos beneficiários dos vouchers de petróleo foi pessoalmente aprovada por Saddam, que fez modificações à versão inicial, excluindo e acrescentando alguns nomes. O resto dos 11 biliões é receita de "vendas a dinheiro" de petróleo iraquiano e de vigarices avulsas.
O objectivo político de Saddam era claro. Através dos subornos e usando instrumentalmente a pressão de uma opinião pública impressionada pelas imagens de sofrimento do povo iraquiano, esperava conseguir a breve trecho que a ONU aprovasse o levantamento do regime de sanções, deixando-o de mãos livres para prosseguir abertamente o que nunca tinha deixado de fazer, embora com o desconforto das sanções: o reequipamento militar do regime.
Vale a pena sublinhar a perfídia da estratégia: note-se que as mortes de civis, por doença e mal nutrição foram em larga medida causadas pelo desvio do dinheiro do programa Oil for Food, que em vez de servir para adquirir alimentos e medicamentos foi utilizado por Saddam para a aquisição de bens de luxo e de armamento. E quanto mais civis morriam, tanto melhor para a estratégia de Saddam.
Para além do (agora) conhecido envolvimento neste esquema de gigantesca corrupção de altos funcionários da ONU, há muito que estão sob investigação indícios do envolvimento de membros da família de Kofi Annan, designadamente de um dos filhos do Secretário Geral.
Os rumores do escândalo não são propriamente novos e levaram Kofi Annan a nomear em Abril deste ano uma
Comissão Independente de Inquérito ao programa Oil for Food, presidida pelo ex-chairman do Federal Reserve, Paul Volcker.
Aparentemente, à medida que a rede de corrupção em torno do programa da ONU vai sendo conhecida, as
resistências aos trabalhos da comissão vão aumentando. As informações preliminares libertadas pela própria comissão indicam que a verdadeira extensão da corrupção e do envolvimento de bancos, empresas e entidades políticas de alguns dos países mais ?críticos? da intervenção militar no Iraque está ainda longe de ser conhecida. Se o relatório Duelfer tem algum defeito neste ponto, parece ser o de uma excessiva modéstia nas conclusões incriminadoras. Aguarda-se portanto com grande interesse pelas conclusões globais da Comissão Volcker.
Em todo o caso, atendendo à gravidade do que já é conhecido, não se compreende como é que o actual Secretario Geral da ONU se mantém em funções. Ele terá, por certo, muitas e excelentes razões. Eu não encontro uma única. Legítima, note-se.