2004-11-19

O Crescente Amarelo

O Sudão é um país com profundas divisões étnicas, religiosas, linguísticas e tribais. Embora cerca de 70% dos sudaneses sejam muçulmanos, o governo "oficial" do pais é controlado por uma elite muçulmana localizada a norte. O resto do território é ocupado por uma multiplicidade de grupos étnicos, que vivem, na generalidade dos casos em condições de pobreza extrema. Desde a independência em 1956 que existe um estado de guerra civil, entre a população (essencialmente) não muçulmana do sul e a população muçulmana do norte. É a guerra civil mais duradoura de África. Desde que o regime de Cartum tentou impor uma teocracia islâmica em 1983 morreram mais de 2 milhões de pessoas em consequência da guerra civil. As milícias árabes apoiadas pelo governo causaram já um número indeterminado de mortos (jornalistas da BBC calculam que sejam mais de 70 000) e mais de 1 milhão e meio de refugiados na região de Darfur. A actuação das milícias Janjaweed não deixa dúvidas: há uma intenção de extermínio da população não-árabe de Darfur.

A prospecção e exploração de petróleo no Sudão começou na década de 60, como actividade off-shore, nas águas do Mar Vermelho. Foi na década de 70 que se descobriram as principais reservas petrolíferas no sul do país, maioritariamente cristão. Desde 1989 que o governo islâmico do norte tem tentado controlar e rentabilizar a exploração petrolífera ao sul. Para o efeito subdividiu a zona sul e sudoeste do país em "blocos", numerados de 1 a 7, que foram concessionados a várias companhias petrolíferas. As expectativas quanto às reservas potenciais de petróleo aumentaram substancialmente entre 1999 e 2002: estima-se que as reservas petrolíferas do Sudão possam superar os 1,2 biliões de barris de crude. Há também apreciáveis reservas de gás natural.

As áreas onde a exploração petrolífera foi concessionada foram sendo objecto de sucessivas limpezas étnicas, negadas quer pelo governo sudanês quer pelas companhias petrolíferas, no que respeita ao "nexo de causalidade". Para os que já se preparam para atirar a "água suja da responsabilidade" para cima dos "ocidentais do costume", note-se que uma das principais companhias interessadas no petróleo sudanês é a CNPC - China National Petroleum Company. A Petronas (Malásia), a Talisman (Canadá), a TotalFinaElf (UE) e a Sudapet (a companhia petrolífera estatal sudanesa) são outros dos major players envolvidos.

É a CNPC que controla o chamado "bloco 6". Onde se situa o bloco 6? Como se poderá verificar no mapa B do relatório Sudan, Oil and Human Rights (2003), da Human Rights Watch é, por coincidência, o bloco que abrange a zona sudoeste, ou seja: a parte sul do território de Darfur.

A 18 de Setembro último, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a Resolução 1564 redigida pela representação americana, onde, no final de mais uma momentosa batalha de vírgulas, a ONU expressa "sérias preocupações" (sic) quanto à ausência de "progressos negociais" no Sudão e anuncia (no ponto 14) que "iria considerar medidas adicionais" que eventualmente afectem o governo sector petrolífero sudanês. Presume-se que esta açorda de palavras deveria ser interpretada pelo governo sudanês como uma vaga referência à possibilidade de um embargo à venda de petróleo.

Ainda assim, um país ameaçou exercer o direito de veto: se respondeu "China", acertou. O ex-Secretário de Estado americano Colin Powell afirmou claramente que há um genocídio em curso no Sudão. Para além do Sudão, como é evidente, o único pais que o nega é a China (outra coincidência).

Depois de uma ronda negocial em Nairobi presidida pelas Nações Unidas, os principais beligerantes assinaram mais um acordo "histórico": concordaram em por termo ao conflito até ao final de Dezembro.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas, já aprovou por unanimidade uma nova resolução prometendo dar ao Sudão precisamente aquilo que tem alimentado o conflito: dinheiro. Assim e a partir de Janeiro, o Sudão receberá 500 milhões de dólares a título de "ajuda". Quanto a sanções no caso de continuação do conflito, ou ao apuramento de responsabilidades pelas atrocidades cometidas pelas milícias árabes, nem uma palavra.

O Sudão não precisa de "injecções" de dinheiro: precisa de uma "injecção" maciça de ordem e de justiça. Numa palavra: de civilização. Mas sobre isso desconfio que a ONU nada sabe ou nada quer saber.

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