Na sessão de quarta-feira interveio o Prof. Jorge Miranda. Tentarei aqui reproduzir o melhor possível os seus argumentos, minha modesta contribuição para o serviço público na blogosfera, mas aviso desde já que não é impossível que me tenha enganado ao tirar as notas ou que as tenha deixado poluir pela minha própria opinião ou ignorância (escusado será dizer que o texto abaixo não é de todo uma reprodução textual das declarações de Jorge Miranda: trata-se de uma colagem de notas mais ou menos avulsas, a que tentei dar uma leitura mais fácil). Afinal, é mais fácil criticar os jornalistas do que meter-se na sua pele, nem que seja por um instante (ver relato no Público de ontem).
Segundo Jorge Miranda, não é ainda tarde para discutir a nova proposta de tratado europeu, mas já não é muito cedo. O primeiro artigo por ele escrito sobre o assunto data de Julho de 2002, mas não só não gerou reacções, como durante quase um ano o assunto não foi praticamente discutido. Segundo ele está em causa um ponto de não-retorno, uma última oportunidade de defender os interesses fundamentais de Portugal. Pessoalmente, diz-se a favor da Europa, defendendo a integração europeia, mas uma integração que salvaguarde os interesses fundamentais de Portugal e da própria Europa. Os vanguardismos que estão por trás da nova proposta de tratado prestam um maus serviço à Europa e à integração. A Europa é uma Europa das nações, que não devem ser "estragadas". O texto do tratado é extremamente errado, por várias razões.
A primeira razão pela qual o texto do tratado é errado é que se destina a estabelecer uma constituição para a Europa. Mas a Europa não são os actuais 15 membros da união europeia, nem tão pouco os 25 que farão parte da união depois do seu alargamento. A Europa inclui estados com a Rússia, a Ucrânia, a Noruega, a Suíça e os dos Balcãs. É errado impor-lhes regras jurídicas. De resto o próprio termo "constituição", como outros que se encontram no texto, é usado de forma errada. Mas as palavras têm força, contribuindo para habituar as pessoas a ideias, mesmo que erradas.
Pode-se entender "constituição" no seu sentido lato ou no seu sentido estrito. No sentido lato, constituição é um conjunto de normas fundamentais que regem uma dada sociedade. São exemplos de constituição neste sentido os estatutos de uma associação, o pacto social de uma empresa, etc. No seu sentido estrito, verdadeiro e próprio, a ideia de constituição tem origem no estado moderno. O objecto de uma constituição é o estado, ou seja, uma sociedade de fins gerais, que só o estado persegue. Mas a União Europeia não é de forma alguma um estado. Por outro lado, as constituições têm um poder originário próprio e auto-justificado, ao contrário das associações, por exemplo. Mas não é isso que está a acontecer com o tratado em discussão. A expressão do poder constituinte pressupõe uma comunidade que o legitima, pressupõe uma origem na sociedade, no povo. Mas não há um povo europeu, nem mesmo ao nível apenas da União Europeia. Não há uma entidade unitária onde radique o poder constituinte. Pode vir a existir povo europeu, daqui a 50, 100 ou 200 anos. Por enquanto há uma pluralidade de povos onde o factor da nacionalidade é preponderante. Aliás, o facto da nacionalidade é tão importante que levou à desagregação da Checoslováquia, da Jugoslávia e da URSS nas nações que as constituíam. Pessoalmente, Jorge Miranda não gostaria de ver o povo português diluído num só povo europeu. Assim, o projecto é-o de um tratado, e será o resultado de negociações diplomáticas, não podendo ser apelidado de constituição, como aliás aconteceu no passado com os restantes tratados da União Europeia.
Ao grupo de trabalho que elaborou a proposta de tratado chamou-se "convenção". Mas não foi uma assembleia constituinte. Não houve debate nem posições divergentes. O texto foi o resultado dos métodos autoritários de Giscard d'Estaing. Não houve uma larga discussão pública em tempo útil antes da CIG (Conferência Inter-Governamental). Não se pode invocar a circunstância do alargamento da União Europeia para justificar toda esta pressa, aliás significativa. A CIG tem até Dezembro para negociar o tratado, que deve ser assinado em Março de 2004, sendo posteriormente ratificado por cada estado da União Europeia. Isto significa que é um tratado, prevendo aliás a sua revisão, usando o mesmo método usado para a sua instituição. O tratado inclui uma cláusula (artigo IV-7º) que diz que basta uma maioria de quatro quintos dos estados da União Europeia terem ratificado uma alteração ao tratado para que a questão "seja estudada":
Se, decorrido um prazo de dois anos a contar da data de assinatura do Tratado que altera o Tratado que estabelece a Constituição, quatro quintos dos Estados-Membros o tiverem ratificado e um ou mais Estados-Membros tiverem deparado com dificuldades em proceder a essa ratificação, o Conselho Europeu analisará a questão.Mas num anexo ("Declaração para a acta final de assinatura do tratado que estabelece a constituição") diz-se que esta maioria de quatro quintos se aplica neste momento, à ratificação do tratado em si:
Se, decorrido um prazo de dois anos a contar da data de assinatura do Tratado que estabelece a Constituição, quatro quintos dos Estados-Membros o tiverem ratificado e um ou mais Estados-Membros tiverem deparado com dificuldades em proceder a essa ratificação, o Conselho Europeu analisará a questão.Tem havido uma pressão inadmissível, inqualificável, para levar o tratado para a frente. A carta das Nações Unidas pode ser alterada por uma maioria de dois terços dos estados, incluindo os membros permanentes do conselho de segurança. É semelhante ao que se passa com este tratado, sobretudo se lembrarmos que já se propôs dar aos estados o respectivo peso demográfico para os mesmos efeitos de revisão, o que criaria um directório europeu, restabelecendo algo de semelhante ao império carolíngio ou ao federalismo prussiano.
Outra preocupação importante de Jorge Miranda relativamente ao tratado diz respeito ao Artigo 10º, número 1:
A Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União no exercício das competências que lhe são atribuídas primam sobre o direito dos Estados-Membros.Isto significa que as leis europeias, leis quadro, regulamentos, e até o regulamento do Banco Central Europeu, se interpretado o artigo à letra, primam sobre as constituições dos estados individuais. Normalmente este direito prevalece sobre a lei ordinária interna, mas sempre se deixaram as constituições acima das leis europeias. Só alguns princípios universais devem prevalecer sobre as constituições, tais como o princípio da não ingerência, os direitos humanos, etc. Um tratado não pode contrariar as constituições dos estados. De facto, as normas emanadas dos órgãos da UE assentam nas suas competências, atribuídas por normas de um tratado, pelo que seria absurdo que prevalecessem sobre as constituições. Nos estados democráticos a constituição é instituída ou alterada por assembleias constituintes, não se podendo conceber constituições outorgadas. Diz-se que as normas europeias vêm indirectamente da vontade popular, mas a distância ao povo é grande. Diz-se também que este primado das normas europeias não é novo, que o Tribunal de Justiça Comunitário já entende que as normas comunitárias primam sobre as normas internas. Mas a verdade é que mesmo aí não se ultrapassam os princípios fundamentais das constituições dos estados. Por exemplo, o número 3 do Artigo 11º da Constituição da República Portuguesa institui o português como língua oficial e seria absurdo que pudesse vir a ser ultrapassado por uma qualquer norma europeia. Numa linha de centralismo, mas não de federalismo, há quem considere útil que o primado das normas comunitárias sobre as constituições seja afirmado. Mas isso seria o fim das soberanias dos estados, pois a soberania implica que a constituição seja a norma suprema. Os estados europeus transformar-se-iam em entidades infra-estatais ou em estados federados.
Com base no texto da proposta de tratado, pode-se sustentar a tese contrária. O número 1 do artigo 5º afirma que "a União respeita a identidade nacional dos Estados-Membros, reflectida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada um deles, incluindo no que se refere à autonomia local e regional.". O número 4 do artigo II-52º diz que, "na medida em que a presente Carta reconheça direitos fundamentais decorrentes das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros, tais direitos serão interpretados de harmonia com essas tradições". E a verdade é que é difícil harmonizar estes dois artigos com o referido número 1 do artigo 10º. Para clarificar esta questão, 37 personalidades, incluindo quase todos os constitucionalistas portugueses, apresentaram uma petição ao Primeiro Ministro para que Portugal proponha na CIG a adição de "ordinário" a esse artigo, que ficaria com a seguinte redacção:
A Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União no exercício das competências que lhe são atribuídas primam sobre o direito ordinário dos Estados-Membros.Uma revisão constitucional admitindo o primado das normas da União Europeia sobre a constituição seria uma ruptura constitucional. Seria o fim da constituição, pois anularia a soberania do estado. Seria, por isso, o fim do estado português, nascido em 1140. Esta objecção não é nacionalista. É uma questão de soberania, uma questão política e de coerência. Apesar disso, há bom e mau nacionalismo.
Acerca do referendo, Jorge Miranda referiu o perigo da realização em simultâneo em todos os estados membros, pois podia-se posteriormente argumentar que o tratado teria ganho legitimidade democrática, que o poder constituinte teria emanado dos povos europeus. Por outro lado, os partidos vão querer envolver-se, pressionando os eleitores. Na opinião de Jorge Miranda, só deve haver referendos em questões transversais às divisões ideológicas. Um referendo sobre a proposta de tratado está claramente nestas circunstâncias, e por isso os partidos deveriam ficar de fora da campanha.
Seguiu-se uma sessão de perguntas e respostas:
Qual a origem de Giscard d'Estaing à cabeça da convenção?José Ribeiro e Castro interveio para esclarecer acerca do funcionamento da convenção. A convenção era integrada por representantes do parlamento europeu, dos parlamentos nacionais, por representantes nacionais e tinha um presidium com representantes da Comissão Europeia. Não houve uma única votação durante o seu funcionamento. Aliás, nem todas as emendas propostas eram traduzidas. O presidente da convenção manobrou os trabalhos. A ausência de votações impediu a auto-organização habitual de funcionar, pois não era fácil aos convencionais perceber quais as posições semelhantes às suas. Significativo foi também o facto de a convenção não ter apresentado textos alternativos, limitando-se a apresentar uma versão.
Chirac quis-se livrar de Giscard d'Estaing. Não se sabe como assumiu o poder na convenção. Não houve projectos, etc. Giscard d'Estaing encarregava-se de tirar a bissectriz das posições dos convencionais.
Qual a a sua opinião acerca do restante conteúdo da constituição, particularmente de um ponto de vista católico?
Quanto à Carta dos Direitos Fundamentais, não há nada a dizer. É uma posição sectária não referir o cristianismo no preâmbulo. Do ponto de vista político, é uma constituição neo-liberal. Mas as competências supostamente partilhadas com os estados membro são na realidade exclusivas da União Europeia. Assim, a subsidiariedade é totalmente abafada. É uma constituição dirigente a nível da União Europeia, pois pretende tudo cobrir. Essa tem sido a prática, de resto. Os burocratas de Bruxelas justificam a sua existência apresentando propostas. De facto, a União Europeia é mais centralizadora do que os EUA, tendo uma forte tendência uniformizadora.
Qual o seu ponto de vista não constitucional?
É uma ilusão supor política externa e de defesa comuns. Basta lembrar as divisões europeias acerca da intervenção no Iraque, por exemplo, observar os interesses permanentes dos estados membro, que são tão diferentes no que diz respeito a África, com os países a lutarem para aumentar o raio de influência da sua língua oficial, ou recordar as posições antagónicas da França e da Alemanha acerca da Jugoslávia. Jorge Miranda disse ainda não gostar da ideia do apagamento das políticas externas nacionais, do fim das embaixadas, substituídas por embaixadas da união, que se adivinha. Quanto às forças armadas, é difícil imaginar o funcionamento de umas forças armadas europeias em várias línguas, excepto se se impusesse o totalitarismo do inglês. Por outro lado, a Europa nunca será uma superpotência, nem isso interessa. Jorge Miranda disse não lhe interessar ainda que a Europa possa fazer uma guerra como a do Iraque.
De regresso à sessão de perguntas e respostas:
A citação inicial da proposta de tratado, de Tucídides, afirma que a democracia é o poder "do maior número de cidadãos". Mas a maioria na Europa está nos grandes países.
A frase, hoje, está errada. Por democracia não se entende poder da maioria, mas sim poder do povo. Aliás, curioso é também o facto de os convencionais agradecerem a si próprios, o que demonstra a enorme vaidade de Giscard d'Estaing: "Gratos aos membros da Convenção Europeia por terem elaborado a presente Constituição em nome dos cidadãos e dos Estados da Europa [...]".
A primazia das normas europeias pode gerar inconstitucionalidades. Como lidar com elas?
Nesses casos prevalece a constituição. Apesar disso, tem-se seguido o princípio da "cooperação leal". Os tribunais constitucionais têm sido flexíveis, pegando apenas nos princípios fundamentais das constituições.
É legítimo que o governo assine o tratado? Que alterações fazer para lhe dar essa legitimidade? Qual o momento mais apropriado para o referendo?
O governo tem legitimidade jurídica para assinar o tratado. Mas seria muito desejável que tivesse havido debates. Os partidos, por exemplo, não se pronunciaram. Quanto à data, o ideal seria o referendo realizar-se antes da assinatura do tratado, ou melhor, antes do final da CIG. Realizar o referendo depois da assinatura, com o facto consumado, é constrangedor para a população.
O alargamento das atribuições da União Europeia não é preocupante?
Um alargamento tão grande pode levar a União Europeia a transformar-se num estado com centralismo jacobino à francesa misturado com federalismo prussiano. É fundamental criar uma segunda câmara, tal como o senado americano, pois seria um sinal de sinceridade federativa.
Não haverá alguns estados europeus onde as constituições não emanem realmente do povo?
Em geral são estados nacionais, com suficiente coesão. Quando não são estados nacionais, pelo menos há fidelidade constitucional.
Será relevante manter presidências rotativas que, com o alargamento da União Europeia a 25 estados, se repetirão apenas de 12 em 12 anos?
Que mal há no longo período das presidências rotativas? Poderia haver um coordenador ou secretário geral que assegurasse a ligação entre presidências. Além disso, a verdade é que os estados pequenos, talvez por isso mesmo, têm cumprido com brio as suas presidências. Mas o princípio da igualdade é mesmo a razão mais importante para as presidências rotativas. Se se considerasse útil reduzir o período das presidências, poder-se-ia estabelecer presidências colegiais, com co-presidentes. Seria complicado, mas teria a virtude de respeitar o princípio da igualdade.
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