2003-11-26

O discurso da Ordem dos Arquitectos

Helena Roseta escreve hoje no Público sobre a arquitectura em Portugal. Vejamos alguns extractos:
Em 1948, um grupo de jovens arquitectos revoltou-se contra a imposição pelo regime salazarista de um estilo "nacional". E partiram, sob o impulso de Keil do Amaral, à descoberta da arquitectura popular, procurando um saber antigo e essencial, onde as formas habitadas nascem da relação entre o homem e o meio.
Ou seja, existe, ou existia em 1948, uma arquitectura feita por não-arquitectos, onde os arquitectos beberam um "saber antigo e essencial", e onde "as formas habitadas nascem da relação entre o homem e o meio". O resultado do estudo dessa arquitectura popular foram dois magníficos volumes, publicados pela primeira vez em 1961 pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos, reeditados em 1988 pela Associação dos Arquitectos Portugueses, e reeditados de novo em Maio deste ano pela Ordem dos Arquitectos.

Um pouco antes, Helena Roseta tinha-se referido ao Decreto 73/73, já aqui discutido:
A esta explosão demográfica não correspondeu nenhuma alteração das políticas legislativas com impacto na arquitectura. A qualificação profissional exigível aos autores de projectos não foi alterada, apesar do êxito da petição entregue na Assembleia para revogar o velho decreto 73/73, que permite a não licenciados em arquitectura fazer projectos.
Mas, não será evidente que a revogação do Decreto 73/73 irá proibir por lei a arquitectura popular? Argumentarão, claro, que a arquitectura de não-arquitectos não tem, hoje em dia, qualquer valor. Que é má. Que destrói a paisagem. Que as nossas casas de emigrante são a ausência de arquitectura. Mas, se assim é, porque é que as construções vernáculas até 1948 tinham todas as qualidades apontadas? Porque gostamos tanto, hoje, de as recuperar, de lhes aumentar o conforto tentando sempre preservar-lhes o carácter? Será que a construção vernácula contemporânea é mesmo desprovida de carácter, ou é a nossa arrogância cultural que nos proíbe de o encontrar? E não será essa arrogância inversamente proporcional à antiguidade da construção ou, ainda pior, ultrapassável apenas quando já não há memória de quem construiu?

Mais à frente, a arquitecta fala de "liberdade de expressão" (as aspas são propositadas):
Hoje, diz Teotónio Pereira, a liberdade de expressão arquitectónica não está ameaçada pela ditadura política mas pela ditadura do mercado. O que se vende, diz ele, é uma arquitectura medíocre, que não pode deixar de afectar a qualidade de todo o tecido urbano.

[...]

É o momento de os arquitectos se voltarem a mobilizar, como fizeram em 1948, pela liberdade de expressão e pelo interesse público. Acrescentando-lhe, em pleno século XXI, as novas formas de defesa da cidadania, de que essa liberdade é condição imprescindível e que o interesse público exige.
O "mercado" a que Helena Roseta se refere é, na realidade, apenas um dos lados do mercado da arquitectura, i.e., os clientes. A "ditadura" é o facto de os clientes pretenderem, naturalmente, que se construa aquilo de que gostam, e que considera (e considero) medíocre. Essa suposta "ditadura" é um perigo para a "liberdade de expressão". Não para a verdadeira liberdade de expressão, que felizmente está de boa saúde, mas sim para a possibilidade dos arquitectos projectarem independentemente das opiniões dos seus clientes.

O artigo termina com um apelo pleno de bandeiras da esquerda. Em nome de um suposto interesse público de que os arquitectos se sentem naturais porta-vozes, pretende-se pela força da lei aumentar a liberdade positiva de alguns, mesmo à custa das liberdades negativas de quase todos.

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