2003-11-16

Arquitectura por decreto? Alguns argumentos contra a revogação do Decreto 73/73

Pedro Jordão, do Epiderme, ao defender a revogação do Decreto 73/73, de 28 de Fevereiro, vem pôr o dedo na ferida:
Portugal é há muito o único país europeu em que não é preciso um arquitecto para assinar um projecto de arquitectura (o que vai, aliás, contra as directivas comunitárias). Em grande parte, porque não existe qualquer cultura urbanística e arquitectónica neste país, ao contrário da vizinha Espanha, por exemplo. A esmagadora maioria dos portugueses não sabe verdadeiramente o que é um arquitecto, o que faz. A ideia dominante (e aberrante) continua a ser a de uma espécie de engenheiro civil que não sabe fazer cálculos e que é mais caro e com mais manias, aquele tipo com pretensões a artista que embeleza os edifícios. Não sabem que as duas profissões, apesar de se encontrarem durante o processo, não têm nada a ver, nem na formação, nem na aplicação. Este problema é cultural, de raiz. Não se muda num ano ou dois. Não se altera por decreto. Ainda assim, é de esperar que a revogação do 73/73 venha a melhorar a qualidade da construção em Portugal, entregando-a (um pouco mais) a quem tem formação para a planear. Mas não acredito por um segundo que a situação se altere totalmente. Os lobbies de outras classes profissionais são demasiado fortes para que, como sucede no resto da Europa, a nova lei consagre o arquitecto como o profissional único na condução do projecto de arquitectura?
De facto, a má arquitectura reinante não é um problema legal. Toda a discussão acerca da revogação do decreto, e em particular a petição entregue pela Ordem dos Arquitectos à Assembleia da República em Dezembro do ano passado, estão pejados de equívocos e de maus argumentos, destinados aparentemente a dar uma aparência de razoabilidade às pretensões dos arquitectos, que na realidade são puramente corporativas.

O primeiro equívoco refere-se à existência de um suposto "direito à arquitectura". Não existe semelhante direito. O que há é indivíduos, que na sua liberdade pretendem erguer edifícios. E arquitectos, que pretendem exercer a sua profissão em igual liberdade. Ambas as liberdades estão perfeitamente cobertas pela legislação existente. Os clientes podem escolher o técnico que entenderem para projectar os seus edifícios, os arquitectos podem-se instalar onde entenderem, criar os seus ateliers, e podem trabalhar em liberdade com os seus clientes. Este conceito de "direito à arquitectura", que dá título à petição, é deixado convenientemente numa grande indefinição. O melhor que se consegue arranjar, no texto da petição, é:
8. Tudo isto acaba por ser prejudicial àquilo a que podemos chamar o "Direito à Arquitectura", decorrência lógica dos Direitos à Habitação e Urbanismo e ao Ambiente e Qualidade de Vida consagrados na Constituição da República Portuguesa. [...]
Ora, o que consta no Artigo 65º da Constituição, sobre Habitação e Urbanismo, é pouco mais do que que "todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar". Não se vislumbra em quê estes direitos são contraditórios com o Decreto 73/73. Serão os arquitectos os únicos capazes de projectar "uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar"? Claramente, não. E mesmo que fossem, decorria daqui a obrigação da assinatura de arquitecto? Será que faz sentido que um (suposto) direito seja imposto? O Artigo 66º da Constituição é mais taxativo. Diz ele que "todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender", e que, para isso, "incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos:"
[...]

b) Ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em vista uma correcta localização das actividades, um equilibrado desenvolvimento sócio-económico e a valorização da paisagem;

c) Criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico;

[...]

e) Promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas;

[...]
Mas, será que destas incumbências decorre naturalmente que têm de ser arquitectos a assinar todos os projectos? Ou será o Decreto 73/73 incompatível com estas incumbências? Não se vê como.

Repare-se que o meu argumento é contra a obrigatoriedade da assinatura dos arquitectos. Eu não tenho quaisquer dúvidas acerca das vantagens de recorrer aos serviços de um bom arquitecto. Fi-lo e voltarei a fazê-lo no futuro. As minhas razões para o ter feito são, no entanto, irrelevantes para esta discussão, com excepção da mais importante das razões: contratei arquitectos, e continuarei a contratá-los, porque quero, porque sou livre.

Mas vale a pena desmontar os argumentos da petição:
1. "A arquitectura é um elemento fundamental da história, da cultura e do quadro de vida" de cada país, "que figura na vida quotidiana dos cidadãos como um dos modos essenciais de expressão artística e constitui o património de amanhã", afirma a Resolução do Conselho da União Europeia de 12 de Fevereiro de 2001. Porque "uma arquitectura de qualidade pode contribuir eficazmente para a coesão social, para a criação de emprego, para a promoção do turismo cultural e para o desenvolvimento económico regional", o Conselho apelou então aos Estados Membros no sentido de assegurar um melhor conhecimento e promoção da arquitectura e da concepção urbanística, bem como sensibilizar os cidadãos para a cultura arquitectónica, urbana e paisagística.
Não deixa de ser curioso que o primeiro argumento da petição seja tão certeiro na sua justeza, e tão pouco apropriado para justificar a revogação do Decreto 73/73. Repare-se mais uma vez que "o Conselho apelou então aos Estados Membros no sentido de assegurar um melhor conhecimento e promoção da arquitectura e da concepção urbanística, bem como sensibilizar os cidadãos para a cultura arquitectónica, urbana e paisagística". Daqui não decorre de forma alguma a necessidade de obrigar à assinatura de arquitectos, nem tão pouco a necessidade de revogar o Decreto 73/73. Porque a fraca qualidade arquitectónica da maioria das edificações portuguesas decorre de escolhas livres dos clientes. Eu não gosto dessas escolhas, mas quem sou eu para impor o meu gosto aos outros? Quem são os arquitectos para se erigirem em padrões do bom gosto? Não, dizem eles, não é uma questão de gosto: é uma questão técnica, pois o arquitecto é especializado em conceber espaços, questões estéticas e de gosto à parte. Seja. Mas será que daí decorre, mais uma vez, a necessidade de revogar o Decreto 73/73? De modo algum! Há regulamentos mínimos relativamente às edificações, aos seus espaços, que devem ser cumpridos. É irrelevante se é um arquitecto ou um engenheiro, ou quem quer que seja, a cumprir o regulamento. Tem é de ser cumprido.
2. À importância social da Arquitectura, praticada por cada vez mais profissionais, correspondeu por parte do Estado Português o reconhecimento da sua importância jurídica, através do estabelecimento das regras básicas de acesso e exercício da profissão, consagradas no Estatuto da Ordem dos Arquitectos (DL 176/98, de 3 de Julho). Neste diploma estão definidas competências disciplinares que permitem actuar contra os arquitectos que não respeitem os seus deveres deontólogicos e profissionais.

3. Estes objectivos legais são no entanto diariamente comprometidos pela manutenção, na prática, de um diploma legal obsoleto, o decreto 73/73, de 28 de Fevereiro, que instaurou um regime transitório segundo o qual as Câmaras Municipais foram autorizadas a aceitar projectos da autoria de pessoas não qualificadas.
Não se percebe. Que objectivos legais são comprometidos?
4. Compreende-se a baixa da fasquia de qualidade no contexto de então: pressão populacional, êxodo rural, crescimento das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e reduzido número de arquitectos (em 69, eram pouco mais de 500 os inscritos no então Sindicato Nacional dos Arquitectos). Mas 29 anos volvidos a carência de profissionais qualificados foi ultrapassada. Existem hoje em Portugal mais de 10.000 cidadãos inscritos na Ordem dos Arquitectos, enquanto outros tantos frequentam licenciaturas reconhecidas, abertas num considerável número de instituições de ensino superior, públicas e privadas.
Que tem o número de arquitectos a ver com isto? Será que o "direito à arquitectura" é, na realidade, um direito a ser protegido por via da lei, uma forma de garantir emprego aos arquitectos? É abusivo tentar justificar a assinatura de arquitecto através do reduzido número de arquitectos existentes então. De facto, o Artigo 6º do Decreto 73/73 refere um regime transitório enquanto não houver técnicos qualificados em número suficiente, mas que é aplicado de forma igual a todos os técnicos definidos nos pontos anteriores, i.e., a arquitectos, engenheiros, etc.
5. Acresce que o exercício profissional da Arquitectura está regulado por Directiva Comunitária (Directiva 85/384, de 10 de Junho de 1985), que determina que "a criação arquitectónica, a qualidade das construções, a sua inserção harmoniosa no ambiente circundante, o respeito das paisagens naturais e urbanas bem como do património colectivo e privado são do interesse público." Tal traduz-se numa exigência de regulação criteriosa, a nível comunitário, das necessidades de formação, envolvendo um conjunto de disciplinas exaustivamente definidas na Directiva, num quadro de estudos superiores de duração nunca inferior a 5 anos.
A leitura desta directiva é muito educativa, pois revela bem o nefasto espírito de uniformização por determinação central de que enferma a União Europeia: "Considerando que os sistemas de formação dos profissionais que exercem actividades no domínio da arquitectura são actualmente muito diversificados; que é, no entanto, conveniente prever uma convergência das formações que conduzem ao exercício de tais actividades com o título profissional de arquitecto [...]". Mas adiante. Que diz esta directiva acerca do exercício da arquitectura? Diz, por exemplo, o seguinte:
Considerando que, na maioria dos Estados-membros, as actividades do domínio da arquitectura são exercidas, de direito ou de facto, por pessoas que possuem o título de arquitecto, acompanhado ou não de outro título, sem que essas pessoas beneficiem por isso de um monopólio do exercício dessas actividades, salvo disposições legislativas em contrário; que as actividades supracitadas, ou algumas delas, podem igualmente ser exercidas por outros profissionais, nomeadamente, engenheiros que tenham recebido uma formação específica no domínio da construção ou da arte de construir;
A legislação propriamente dita, em particular o Artigo 2º, deixa claro que se trata de uma legislação que tem como objectivo facilitar em cada estado o exercício da profissão por parte de cidadãos de outros estados da União Europeia:
Cada Estado-membro reconhecerá os diplomas, certificados e outros títulos obtidos mediante uma formação que satisfaça os requisitos dos artigos 3º e 4º e emitidos aos nacionais dos Estados-membros pelos outros Estados-membros, atribuindo-lhes no seu territótio, (SIC! território,) no que se refere ao acesso às actividades referidas no artigo 1º e ao exercício destas com o título profissional de arquitecto, nas condições previstas no nº1 do artigo 23º, o mesmo efeito que aos diplomas, certificados e outros títulos por ele emitidos.
Ou seja, não se pretende aqui de forma alguma, e tanto quanto percebi, estabelecer critérios uniformes a nível europeu acerca de quem pode assinar projectos (a versão inglesa da legislação é mais clara).
6. É certo que a obtenção de qualificação académica, só por si, não determinará a qualidade da Arquitectura, que carece de muita prática, espírito crítico, experiência, criatividade, pesquisa e avaliação. Mas sem formação adequada é impossível fazer face à complexidade crescente e à responsabilidade social inerente a esta actividade. Seria impensável, por exemplo, que aviões fossem conduzidos sem ser por pilotos, que pontes fossem calculadas sem ser por engenheiros, ou operações cirúrgicas fossem realizadas sem ser por médicos. A segurança e saúde do nosso tecido urbano não são menos importantes que as de cada um dos cidadãos. Uma formação adequada e a sujeição a regras profissionais e deontológicas comuns, através de um associação pública, são meios de garantir o mínimo de qualidade nos serviços arquitectónicos prestados.
Este ponto começa por uma evidência. Se é verdade que há muita edificação em Portugal que não merece ser considerada como resultado do exercício da arquitectura, e que muitas dessas edificações não têm assinatura de arquitecto, é inegável também que existe uma enorme quantidade de obra de arquitectos que, em rigor, também não merece ser classificada de arquitectura, tão má a sua qualidade. Apetece-me citar em segunda mão José Augusto França, citado num artigo de Luísa Botinas intitulado "Da construção à arquitectura", no Diário de Notícias de 22 de Dezembro de 2002:
No domínio da arquitectura, a palavra [mamarracho] pode ser empregue porque muitos mamarrachos se têm edificado, como é inevitável, por incúria de várias câmaras municipais e também por falta de talento de muitos arquitectos e de gosto da maior parte dos clientes.
Porque a verdade é que, em última análise, o cliente é que determina o que uma obra será, pois pode sempre escolher o projectista que entender, e é bom que assim seja. A revogação do Decreto 73/73 irá redundar, provavelmente, num enorme acréscimo de clientela nos piores arquitectos, naqueles que fazem rigorosamente o que os clientes querem, e que de arquitectura se limitam a ostentar um diploma. Não. De facto não há nenhuma esperança em que a qualidade arquitectónica em Portugal melhore por decreto. O que acontecerá, isso sim, é que o exercício do mau projecto mudará de mãos por força da lei. Concentrar-se-á nas mão daqueles que a Ordem dos Arquitectos defende. Mas mesmo que houvesse alguma esperança de aumento da qualidade arquitectónica, tal nunca seria admissível, pois constituiria uma violação a um direito elementar dos portugueses: o direito à liberdade, o direito a serem livres de ter mau gosto.

A parte mais falaciosa do argumento encontra-se um pouco mais à frente, quando se tenta fazer um paralelo entre o exercício da arquitectura, naquilo que tem de específico e que o exercício da engenharia civil, por exemplo, não envolve, com a pilotagem, a construção de pontes ou as operações cirúrgicas. Há razões fortes para regulamentar o exercício dessas actividades. São actividades onde a falha de quem as exerce tem consequências tão dramáticas que se justifica a intervenção a priori, restringindo o seu exercício a quem tenha tenha dado provas de as saber exercer bem e com segurança. A presunção, numa democracia liberal, é a de que a liberdade dos indivíduos só deve ser limitada se houver fortes razões para isso. Só se restringe o exercício de uma actividade se, do seu mau exercício, resultarem danos irreparáveis ou, pelo menos, tão grandes que se justifique essa restrição, que não pretende eliminar a os acidentes ou as más práticas, mas simplesmente reduzir a sua probabilidade a níveis aceitáveis, dadas as suas potenciais consequências. Com a revogação do Decreto 73/73 está-se a tentar limitar os estragos em quê, de tão grave? Não se trata da segurança das edificações (estrutura, ar condicionado, incêndios, etc.), onde se mete pelos olhos dentro que um engenheiro civil tem tantas ou melhores competências que um arquitecto. Trata-se, isso sim, daquilo que é específico da arquitectura. Mas a má prática daquilo que é específico da arquitectura pode levar a consequências tão graves como as da má prática da pilotagem, da construção de pontes ou da cirurgia? A resposta é um claro e enfático não.
7. A manutenção do regime transitório consagrado pelo decreto 73/73 viola frontalmente a Directiva 85/384 e o DL 176/98 ( Estatuto da Ordem dos Arquitectos ). Dificulta ainda a concretização do imperativo constitucional relativo às responsabilidades do Estado na protecção do ambiente e do património. E impede o exercício da profissão de arquitecto num ambiente de concorrência leal.
Quanto aos primeiros pontos, relativos à directiva da União Europeia e ao Estatuto da Ordem dos Arquitectos, foram desmontados mais atrás. A questão da protecção do ambiente e do património foi também tratada, embora acrescente que não se vislumbra relação desta questão com o ambiente, e que em relação ao património, existem entidades encarregues de garantir a sua preservação, ou não adulteração, tal como o IPPAR. Eis-nos, pois, chegados à demagogia mais completa. Segundo a Ordem dos Arquitectos, o Decreto 73/73 "impede o exercício da profissão de arquitecto num ambiente de concorrência leal". Como assim? Que concorrência desleal é esta? Engenheiros a assinarem projectos? O problema é, justamente, o oposto: o Decreto 73/73 garante uma concorrência que desaparecerá caso seja revogado! O objectivo da petição é este. Não é aumentar a concorrência, mas reduzi-la. É uma petição claramente corporativista.

Esta petição é demagógica e corporativista, portanto. A defesa da arquitectura em Portugal não se faz com medidas proteccionistas. Faz-se com a educação das pessoas para a boa arquitectura, com a demonstração das suas vantagens, faz-se pela competência e pela abertura ao cliente. Faz-se com o cliente, e não contra ele. Faz-se seduzindo o cliente, e não violentando-o.

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