2003-11-22

Há uma ortodoxia liberal?

Transcrevo um comentário que me parece merecer destaque. É assinado por Carlos Fernandes, tanto quanto pude depreender:
Há uma coisa que me intriga e que gostava de ver esclarecida por um neo-liberal mais ou menos lúcido. Acredita realmente que a economia e outros sistemas criados pelos humanos possuem mecanismos inerentes de auto-regulação? É que eu julgo que essa crença só pode ser um acto de fé (tal como a crença num estado marxista ortodoxo). Sugiro uma abordagem mais científica dos conceitos para uma melhor auto-crítica das nossas ideias. Se olharmos para a obra do biólogo Stuart Kauffman reparamos num conceito cahmado auto-organização. Tirando todos as ideias polémicas desta teoria, um conceito parece indiscutível: a evolução no limiar do caos. Como é que alguém pode pensar que qualquer sistema económico ou social (criados pelo homem) apresentam as características necessárias para uma evolução (ou transição de estados) que não caia no caos nem em ciclos finitos perpétuos? Pode ser que seja verdade, que a economia mundial seja equivalente ao clima da Terra: pequenas perturbações podem manifestar-se tragicamente, mas, mais tarde ou mais cedo, tudo volta ao normal. Mas nada disto está provado. Mesmo que estivesse, deveriamos deixar esses sistemas correr livremente, correndo o risco de observar desastres, mesmo sabendo que poderiam estabilizar posteriormente? Já se usou o nome de Darwin e a sua importante teoria para justificar o injustificável (ignorando a essência da teoria, mas a isso chama-se ignorância ou desonestidade intelectual). Iremos agora usar, levianamente e incorrectamente, a teoria da complexidade para justificar ideologias? É provável. Mas quem estiver melhor informado tem a obrigação de alertar para os perigos de uma abordagem errada da ciência (já nos basta Boaventura Sousa Santos).

Como sugestão de leitura deixo o nome de dois livros:
John Holland, A Ordem Oculta (Gradiva)
Stuart Kauffman, At Home in the Universe: The Search for the Laws of Self-Organization and Complexity (não está traduzido)
Não sei bem o que é um neo-liberal, mas como não me ofende a etiqueta de liberal, seguem algumas ideias sobre os assuntos que refere. (E sim, acho que sou "mais ou menos" lúcido, embora provavelmente nem todos concordem.)

Há vários níveis de análise para esta questão. Em primeiro lugar, a posição liberal parte do princípio que a liberdade é um direito essencial, só podendo ser limitado por razões suficientemente fortes. Daí que a presunção do liberal comece por ser que é preferível um mercado livre a um mercado regulado ou, pior, totalmente centralizado. Até aqui, a auto-regulação não surge. Num segundo nível de análise, parece evidente que há auto-regulação num mercado livre, admitindo, evidentemente, que se vive num estado de direito, onde se pode recorrer à justiça e onde os contratos são, em geral, respeitados. Em Portugal há mercados com forte intervenção estatal, mas há outros onde essa intervenção é menor, e que nem por isso deixam de funcionar. Pode-se argumentar que um mercado livre funciona melhor que um mercado regulado, que a auto-regulação é não apenas suficiente, mas mais eficiente que a regulação centralizada. Foi o que fez Hayek, que falou de ordem espontânea, no que foi provavelmente um percursor da ideia de auto-organização (aliás, provavelmente as duas expressões são sinónimas).

É interessante que tenha referido John Holland. Tive a sorte de o ouvir há umas semanas no S. Jorge, e não pude deixar de me entusiasmar com a ideia de que o estudo dos Sistemas Complexos Adaptativos pode deitar alguma luz sobre os mecanismos dos mercados, sobre a eficiência, ou não, da auto-regulação. Esse entusiasmo é temperado por um forte cepticismo quanto à possibilidade de alguma vez se poder fazer alguma previsão certeira e não-trivial baseada em simulações desse tipo de sistemas. Nesse sentido, identifico-me com a escola austríaca, embora não por uma questão de princípio, mas por uma questão de realismo.

Repare que a posição liberal não é, nem pretende ser, científica. A presunção inicial, da liberdade como direito fundamental, nada tem de científica. Não sendo científica, poderia transformar-se num acto de fé, numa ortodoxia, mas isso só aconteceria se se desligasse da realidade. Ou seja, como qualquer posição ideológica moderada, o liberalismo (ou pelo menos aquilo que eu entendo por liberalismo, pois em política há quase tantas definições quantas cabeças) assenta na realidade. Recorrendo de novo a Hayek, diz ele que "to prohibit the use of certain poisonous substances or to require special precautions in their use, to limit working hours or to require certain sanitary arrangements, is fully compatible with the preservation of competition. [...] Nor is the preservation of competition incompatible with an extensive system of social services - so long as the organization of these services is not designed in such a way as to make competition ineffective over wide fields". Embora esta posição não seja consensual entre os que se dizem liberais, mostra que há muitos liberais (diria mesmo que são quase todos) que não rejeitam liminarmente a intervenção do estado. Aliás, a diversidade enorme de opiniões que cabem dentro do liberalismo (anarco-capitalismo, minárquicos, etc.) demonstra bem que a questão da auto-regulação não tem, no liberalismo, o estatuto de um dogma ou de uma revelação. Citando de novo Hayek, "nor does [the liberal argument] deny that, where it is impossible to create the conditions necessary to make competition effective, we must resort to other methods of guiding economic activity".

Pergunta "como é que alguém pode pensar que qualquer sistema económico ou social (criados pelo homem) apresentam as características necessárias para uma evolução (ou transição de estados) que não caia no caos nem em ciclos finitos perpétuos?" A realidade não parece demonstrar a ideia de que um sistema económico ou social cai necessariamente no caos ou em ciclos finitos perpétuos. Aliás, a ideia de que cai necessariamente nesses comportamentos é que me parece uma extrapolação perigosa de resultados científicos, mas teria de ler o livro para o poder afirmar. Como diz, nada disto está provado. Envolvendo comportamento humano, provavelmente nunca estará.

Pergunta-se se, sendo o comportamento dos sistemas envolvendo agentes humanos essencialmente imprevisível, não será perigoso "deixar esses sistemas correr livremente, correndo o risco de observar desastres, mesmo sabendo que poderiam estabilizar posteriormente?" Responder-lhe-ia que não, que se alguém puder antecipar um desastre deve obviamente fazer tudo ao seu alcance para o evitar. (Curiosamente, no entanto, as sociedades mais liberais não parecem particularmente sujeitas a desastres.) Mas a posição de um liberal é a de que, com o nosso conhecimento individual limitado e com uma capacidade de previsão reduzida, é geralmente melhor deixar as coisas correr do que limitar as liberdades com medo de desastres largamente imaginários.

Quanto ao alerta que lança, acerca da utilização abusiva de ciência, tem toda a razão de ser. Mas, se a ideia de estudar os Sistemas Complexos Adaptativos é apelativa para um liberal, a ideia de aplicar os seus resultados para justificar a sua posição ideológica será sempre olhada por ele com muita desconfiança. Enfim, pelo menos por mim.

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