2003-12-30
Uma grande Aba
A Aba de Heisenberg desmonta os argumentos de Miguel Sousa Tavares e demonstra os perigos da velocidade: aqui, aqui, aqui e aqui.
Demências
Sermões patrocinados pela Autoridade Palestiniana (via MEMRI). Um excerto:
[Even when] a martyr's organs are being chopped off, and he turns into torn organs that spread all over, in order to meet Allah, Muhammad, and his friends, it would not be [considered] a loss? This is the honor given to our martyrs, the martyrs of the Islamic nation, who were killed due to their loyalty to Allah... The sacrifice of convoys of martyrs [will continue] until Allah grants us victory very soon. The willingness for sacrifice and for death we see amongst those who were cast by Allah into a war with the Jews, should not come at all as a surprise? Oh believing brothers, we do not feel a loss... The martyr, if he meets Allah, is forgiven with the first drop of blood; he is saved from the torments of the grave; he sees his place in Paradise; he is saved from the Great Horror [of the day of judgment]; he is given 72 black-eyed women; he vouches for 70 of his family to be accepted to Paradise; he is crowned with the Crown of glory, whose precious stone is better than all of this world and what is in it?
August 17, 2001, Sheikh Isma'il Aal Ghadwan, Sheik 'Ijlin Mosque in Gaza, PA Television.
2003-12-26
Ai meu rico carrinho!
Para Miguel Sousa Tavares, há quatro questões em que o "conservadorismo de pensamento" "determinou a orgulhosa inflexibilidade ideológica". Quais são?
Refiro-me à política de agravamento das multas e punições por excesso de velocidade no novo Código da Estrada que aí vem, na recusa das chamadas "salas de chuto" (assistidas ou não) nas prisões, a liberalização do consumo de drogas leves e a descriminalização do aborto (ou até mesmo a sua simples despenalização). A todas as sugestões de ensaiar uma via alternativa nestas matérias, a direita que governa respondeu: "Não, não, não e não."Que faz o excesso de velocidade neste lote? Note-se que, para Miguel Sousa Tavares:
São quatro exemplos de como uma hipocrisia erigida em pseudovalor moral pode causar danos concretos, mortes incluídas, às vítimas desses valores. Em nome do Estado, em nome da moral cristã ou - pior e nunca dito - em nome, muitas vezes, de interesses de negócio instalados, por exemplo na lavagem de dinheiro da droga ou na pretensa recuperação dos drogados. Santíssima hipocrisia!Quem serão as vítimas da punição do excesso de velocidade? Quem beneficiará com que negócio? É necessário ser dono de uma demagogia inacreditável para se afirmar que a punição do excesso de velocidade irá aumentar o número de mortos na estada. Não. Não é só demagógico. É profundamente desonesto.
2003-12-24
Leituras sobre o aborto
Desidério Murcho, na sequência de um comentário deixado na entrada Aborto: posições inaceitáveis, enviou-me uma lista de leituras sobre o assunto, que aqui partilho:
Eis algumas sugestões de leituras introdutórias centrais sobre o aborto:Abortion and Infanticide, de Michael Tooley (Livro polémico, mas muito claro.)A Companion to Ethics, org. por Peter Singer (Tem um artigo sobre o aborto que apresenta as principais posições e orienta leituras).Applied Ethics, org. por Peter Singer (Tem alguns dos artigos clássicos da área, como o da Jarvis Thomson e o do Tooley, que deu depois origem ao livro).Ethics in Practice, org. por Hugh Lafollette (Mais alguns artigos clássicos da área, tem alguma sobreposição com a antologia anterior; se tiver de escolher só uma delas, escolha esta. Tem um site informativo, com alguns materiais.)
"Religião e Questões Morais Particulares", in Elementos de Filosofia Moral, de James Rachels (O livro vai sair a 20 de Janeiro na Gradiva e tem uma secção muito esclarecedora sobre como se faz o debate sobre o aborto.)Há inúmeras colectâneas de artigos só dedicados ao aborto, assim como livros. Mas estas leituras parecem-me centrais. E tanto as duas colectâneas apresentadas como o Companion são obras de consulta importantes para o público leigo interessado quer na ética aplicada quer noutros aspectos da ética.
Penso que o Pedro Galvão está a organizar uma colectânea de artigos sobre o aborto, mas não sei qual será o editor.
2003-12-22
Oficializar o roubo?
Salazar fixou as rendas urbanas de Lisboa e Porto. Após o 25 de Abril essa medida "social" foi estendida a todo o país. O resultado está à vista. O mercado de arrendamento praticamente desapareceu, os senhorios praticamente faliram, os prédios degradaram-se, os portugueses jovens são hoje quase todos candidatos a proprietários, a mobilidade dos cidadãos reduziu-se, pois se são proprietários não querem pagar os impostos associados a todas as trocas de habitação (mais-valias e sisa) e se são inquilinos não querem perder a sua renda artificialmente baixa. As cidades foram envelhecendo com os seus habitantes. Os senhorios tornaram-se nos financiadores da política de rendas baixas do estado, que não gasta um tostão com a sua generosidade.
O governo pretende pôr a cereja sobre este magnífico bolo. Acabar com a lei das rendas, ou melhor, liberalizá-las, não lhe passa pela cabeça. Seria necessário demasiada coragem. Seria necessário arcar com o financiamento das rendas de quem hoje usufrui de rendas baixas e mais não pode pagar. Não. Tanto quanto percebi deste artigo, e espero sinceramente estar enganado, o estado prepara-se agora para permitir que sociedades de capitais municipais expropriem prédios degradados. Roubaram-se os senhorios aos poucos durante anos para, no fim, por falta de paciência, se roubar o que resta de uma só vez. Perfeito.
(Leia-se também a entrevista onde a Secretária de Estado da Habitação Rosário Águas afirma que os proprietários terão oportunidade de recuperar eles próprios os imóveis e, caso não o façam, verão a sua propriedade expropriada. Fica convenientemente omisso como poderão os proprietários recuperar os edifícios sem liberalizar as rendas praticadas. Pormenores.)
O governo pretende pôr a cereja sobre este magnífico bolo. Acabar com a lei das rendas, ou melhor, liberalizá-las, não lhe passa pela cabeça. Seria necessário demasiada coragem. Seria necessário arcar com o financiamento das rendas de quem hoje usufrui de rendas baixas e mais não pode pagar. Não. Tanto quanto percebi deste artigo, e espero sinceramente estar enganado, o estado prepara-se agora para permitir que sociedades de capitais municipais expropriem prédios degradados. Roubaram-se os senhorios aos poucos durante anos para, no fim, por falta de paciência, se roubar o que resta de uma só vez. Perfeito.
(Leia-se também a entrevista onde a Secretária de Estado da Habitação Rosário Águas afirma que os proprietários terão oportunidade de recuperar eles próprios os imóveis e, caso não o façam, verão a sua propriedade expropriada. Fica convenientemente omisso como poderão os proprietários recuperar os edifícios sem liberalizar as rendas praticadas. Pormenores.)
2003-12-21
Aborto: posições inaceitáveis
O Padre Feytor Pinto, em entrevista conduzida por Maria João Avilez e transmitida hoje na SIC Notícias, referiu-se à eutanásia e ao aborto (de memória, não garanto as palavras exactas, apenas o sentido):
A eutanásia está na moda. Hoje, quando alguém nos incomoda elimina-se, como Hitler fazia. Quando não há paciência para os velhos, vemo-nos livres deles. Quando uma criança nos incomoda, aborta-se.São estas afirmações, bem como as de "aqui [na barriga] mando eu", no extremo oposto, que nada contribuem para a discussão sobre estes assuntos tão delicados. Todas as subtilezas, qualificações, cuidados que devem ser colocados ao defender esta ou aquela posição são esquecidos, são, aliás, deliberadamente ignorados, sobrando apenas a afirmação panfletária. No meio desta cacofonia de argumentos, os únicos verdadeiramente racionais e cuidadosos com que alguma vez me deparei foram os de Peter Singer. Paradoxalmente, não concordo de todo com as conclusões. Mas vale a pena lê-lo para perceber como se argumenta, como se pensa, como se evita a simplificação. Como se pode tentar ser coerente ou, pelo contrário, como se pode optar deliberadamente pela incoerência ao reconhecer os limites da razão (coisa que Peter Singer não faz, de resto). Argumentos como o direito da mulher sobre o seu corpo são, naturalmente, absurdos: é que se trata, justamente de outro corpo, de outro ser, que será morto. Peter Singer discute seriamente em que circunstâncias é errado tirar uma vida. Essa discussão é a mais importante a fazer. É, também, aquela onde será mais difícil chegar a acordo. Todos, ou quase todos, concordamos que o infanticídio é um crime horrível. Todos, ou quase todos, aceitaremos como válido o argumento, de Peter Singer, de que não há diferença material entre matar após o nascimento ou antes do nascimento, ou que, pelo menos, se houver diferença, deve-se à idade do ser humano, e não ao acto do nascimento em si. Quando se fala acerca do aborto, os tempos são fundamentais. Muitos, embora não todos, concordarão que um óvulo acabado de fecundar não merece o mesmo respeito que um ser humano adulto, ou que um bebé com nove meses após a concepção. Não consegui (ainda?) encontrar nenhum argumento verdadeiramente convincente para o limite das 12 semanas de idade. Nem é claro se deva estabelecer algures uma fronteira arbitrária. Talvez a solução passasse por uma gradualidade temporal na penalização do acto, correspondente à nossa intuição moral sobre a sua gravidade crescente. Mas será possível fazê-lo? Segundo alguns, trata-se de um problema de consciência, e como tal deve ficar à consciência de cada um, sem penalização legal. Mas este argumento é, também, absurdo. Não o aplicamos, por exemplo, à violência doméstica, porque o haveríamos de aplicar aqui? Decididamente, precisamos de verdadeiras discussões, e não de guerras de palavras extremadas e panfletárias.
Alegoria aos impostos
Hoje fui ver um espectáculo de Luís de Matos no CCB. Depois de fazer um truque em que "transformou" uma nota de 5 euros numa nota de 50 euros, Luís de Matos disse à audiência que faria o mesmo com todas as notas de 5 euros que a audiência lhe passasse. Ao todo deram-lhe 10 notas. Depois de afirmar que o truque, infelizmente, só funcionava com 11 notas, meteu as 10 notas ao bolso. Pouco depois disse algo como isto: "Há 10 pessoas que me odeiam nesta sala. Mas, por outro lado, todas as restantes estão satisfeitíssimas, tendo-se rido e gozado com o que aconteceu às primeiras. O balanço é claramente positivo."
2003-12-18
Os leitores
Um comentário de Carlos, demasiado longo para ficar simplesmente no sistema de comentários:
Até à maioridade os indivíduos não são verdadeiramente livres. Apesar disso, preservam um grau de liberdade que vai informalmente crescendo até à maioridade, momento em que, segundo a lei, passam a ser cidadãos plenos. Até essa idade, a responsabilidade pela educação dos indivíduos é dos pais (ou dos encarregados de educação). Essa responsabilidade traz consigo algumas prerrogativas, tais como a liberdade de, dentro de determinados limites muito largos, escolherem a educação a dar aos seus filhos. Quando se proibe a utilização de véus, está-se a violar certamente a liberdade de alguém. Pode ser a liberdade dos pais, ou a das filhas, ou possivelmente a liberdade de ambos. Essa violação da liberdade não decorre do facto de o seu exercício entrar em conflito com a liberdade de outrem. Usar um véu em nada viola a liberdade de terceiros. A verdade nua é que o uso do véu viola simplesmente o desejo jacobino de uniformização da sociedade (pelo menos na esfera de acção do estado, já que a batalha pela uniformização está claramente perdida na sociedade como um todo). Trata-se, pois, dos últimos estertores do igualitarismo à força.
Também eu fui educado catolicamente. Também eu era levado à missa, contra a minha vontade. Também eu cedo abandonei a religião. E no entanto, acho que os meus pais fizeram exactamente aquilo que deviam. Tentaram ensinar-me os seus valores, a sua cultura, a sua religião. Quantas coisas, enquanto menores, fazemos contra a nossa vontade! É inevitável e, desde que não se ultrapassem limites da decência, é mesmo desejável que assim seja. Poderá uma educação religiosa "marcar irremediavelmente uma jovem consciência? Não poderá impedir uma mente formada de optar por diversos sistemas ético-morais?", pergunta. A minha resposta é um rotundo não, pois não estamos a falar de lavagens ao cérebro nem de incitamento à violência, não estamos a falar das madrassas afegãs ou paquistanesas, em suma. Estamos a falar de verdadeira educação, embora com um fundo religioso. Assim sendo, essa educação, muito pelo contrário, pode contribuir para "uma mente formada [...] optar por diversos sistemas ético-morais". Se optei pelo agnosticismo, foi porque fui educado como católico. Quando pergunta se "alguém conhece um crente que, depois de uns dias (ou semanas, ou meses [ou anos]) de meditação, leitura e diálogo, tenha dito serenamente: 'Talvez Deus não exista. Acho que andei enganado durante toda a vida.'", a minha resposta só pode ser um taxativo sim. Sim, conheço. Como conheço casos inversos, embora mais raros.
Pergunta-se também se, tendo filhos e achando que "a escola os corrompe moralmente", terá "o direito de os impedir de a frequentar até aos dezoito anos". Mais uma vez a resposta é sim. Tem todo o direito. Não tem, claro, o direito de negar educação aos seus filhos, mas pode perfeitamente decidir que eles não devem frequentar escolas com cujo ensino não concorda. Se não concordar com o ensino em nenhuma escola, e não os colocar em nenhuma delas, terá a obrigação de os educar sozinho. Essa escolha é permitida, e bem, pela lei.
Quando se pergunta se "não será que uma sociedade tem a obrigação de limitar a exposição das suas crianças ao poder hipnótico dos símbolos religiosos?", está a entrar por terreno muito, muito perigoso. Quem é "a sociedade" para decidir uma coisa dessas? Conhece-a? Aquilo a que se chama sociedade é um simples agregado de indivíduos com algumas características em comum, mas com opiniões inconciliáveis. Mesmo que a maioria veja os perigos que aponta na religião - e eles são quase totalmente imaginários - não teria nunca o direito de interferir com a educação que os pais preferem para os seus filhos.
É evidente que em todos estes aspectos não é possível estabelecer uma fronteira clara para a liberdade dos indivíduos. Onde termina a liberdade dos pais? A partir de onde é obrigação do estado intervir? É uma boa questão, a que não se pode responder senão de uma forma genérica: termina onde começa a liberdade dos filhos, que é uma liberdade de cidadão menor, uma liberdade não-plena. Será admissível usar burca? No espaço público geralmente não. Não porque seja um símbolo religioso, ou um sinal de opressão, mas sim porque há uma proibição legal de andar de cara tapada por questões de segurança pública. Há opressão? Combata-se. Há sinais exteriores de opressão? Investigue-se. Há sinais exteriores que, em alguns casos (tais como o caso do véu), podem significar opressão? Nada a fazer. Enquanto houver a possibilidade de a sua ostentação ser voluntária, é inadmissível proibir tais sinais pela lei.
Quanto aos símbolos satânicos, a minha resposta é que não devem ser proibidos, excepto se corresponderem a um claro apelo à violência. Enquanto assim não for, a liberdade individual está primeiro.
Diz, finalmente, que "Se eu fosse pai, preferia que os meus filhos, frequentassem uma instituição livre de símbolos religiosos (e políticos)". Está no seu direito. Para isso existem as escolas privadas, que estabelecem os seus próprios critérios livremente, e que cada um tem o direito de frequentar livremente, desde que aceite as suas regras. O problema é quando se pretende impor uma tal regra nas escolas estatais, única escolha para muitos pais em países onde a igualdade de oportunidades na educação não existe, onde o estado detém as escolas, em vez de ajudar os mais necessitados a pagar a educação dos filhos. Talvez esta história seja a demonstração cabal de que o estado, na educação, deveria reduzir-se cada vez mais a um papel regulador.
Tenho pensado nesta questão desde há algum tempo. No início, a proibição de símbolos religiosos na escola parecia-me um desrespeito das liberdades do indivíduo. Mas, reflectindo melhor sobre o assunto, formei uma opinião diferente.
Comecei por concluir que, na maior parte dos casos (e os outros casos nunca serão para desprezar), a ostentação de símbolos religiosos numa escola, frequentada, maioritariamente, por menores de idade, não é um exercício de livre vontade. Recordo-me da minha infância e da minha resistência sem tréguas ao ingresso num grupo de catequese (sim, é verdade, a minha idade ainda não atingia os dois algarismos quando comecei a achar pouco razoável a ideia da existência de um deus). Podem dizer que os pais têm o direito de escolha da educação religiosa dos seus filhos até que estes atinjam a maioridade. Terão? Se eu tiver filhos e achar que a escola os corrompe moralmente, tenho o direito de os impedir de a frequentar até aos dezoito anos? Dirão que a ausência de educação escolar marcará um ser humano para toda a sua vida e que os dezoito anos perdidos nunca poderão ser recuperados. Têm razão. Mas uma educação religiosa não poderá marcar irremediavelmente uma jovem consciência? Não poderá impedir uma mente formada de optar por diversos sistemas ético-morais?
Claro que existem muitas mais heranças transmitidas familiarmente; a isso chama-se cultura. Mas existe alguma, como a herança religiosa, que possa coibir o pensamento livre para o resto de uma vida? Muita gente muda de ideologia política, outros aceitam novos paradigmas científicos (com mais ou menos hesitação) que lhes derrubam o trabalho de uma vida, alguns abdicam de um sistema filosófico em favor de outro. Mas o abalo da base religiosa só acontece por motivos raros e muito fortes que, muitas vezes, deixam uma amargura que não se desvanece. Alguém conhece um crente que, depois de uns dias (ou semanas, ou meses) de meditação, leitura e diálogo, tenha dito serenamente: “Talvez Deus não exista. Acho que andei enganado durante toda a vida.”
Tenho observado que a maior parte das mentes religiosas mais abertas adquiriram a sua espiritualidade numa fase adulta da vida, conseguindo conciliar a crença numa divindade (quase sempre não interventiva) com sistemas filosóficos e/ou científicos, cuja essência parece, numa primeira observação, totalmente incompatível com a religião. Será coincidência?
Não será que uma sociedade tem a obrigação de limitar a exposição das suas crianças ao poder hipnótico dos símbolos religiosos? Será que a religião não tem força suficiente para se impor de outra forma, como outras ideias se impõem, nas mentes de jovens e adultos?
Outras questões: Até onde deve chegar a tolerância? O uso de burka deve ser permitido? As aulas devem ser interrompidas para a oração dos muçulmanos? O dia 25 de Dezembro deve ser feriado?
A apresentação do genesis, num trabalho escolar sobre a evolução, deve ser tolerada e avaliada?
E uma última pergunta: a exibição de símbolos satânicos deve ser tolerada numa escola pública? (Lembro, a propósito desta questão, que num país da união europeia, a Grécia, o satanismo é considerado crime – e não é necessário que a sua ostentação seja feita num lugar público para ser punido).
Ninguém impede as crianças francesas de colocar o véu ou o crucifixo quando saem da escola. Se eu fosse pai, preferia que os meus filhos, frequentassem uma instituição livre de símbolos religiosos (e políticos). Já existe demasiada pressão de grupo na vida das crianças.
É esta a minha opinião, não muito convicta, ainda tenho muitas reservas em relação a um assunto que, sem dúvida, pode estar a perturbar a liberdade de alguns.
Até à maioridade os indivíduos não são verdadeiramente livres. Apesar disso, preservam um grau de liberdade que vai informalmente crescendo até à maioridade, momento em que, segundo a lei, passam a ser cidadãos plenos. Até essa idade, a responsabilidade pela educação dos indivíduos é dos pais (ou dos encarregados de educação). Essa responsabilidade traz consigo algumas prerrogativas, tais como a liberdade de, dentro de determinados limites muito largos, escolherem a educação a dar aos seus filhos. Quando se proibe a utilização de véus, está-se a violar certamente a liberdade de alguém. Pode ser a liberdade dos pais, ou a das filhas, ou possivelmente a liberdade de ambos. Essa violação da liberdade não decorre do facto de o seu exercício entrar em conflito com a liberdade de outrem. Usar um véu em nada viola a liberdade de terceiros. A verdade nua é que o uso do véu viola simplesmente o desejo jacobino de uniformização da sociedade (pelo menos na esfera de acção do estado, já que a batalha pela uniformização está claramente perdida na sociedade como um todo). Trata-se, pois, dos últimos estertores do igualitarismo à força.
Também eu fui educado catolicamente. Também eu era levado à missa, contra a minha vontade. Também eu cedo abandonei a religião. E no entanto, acho que os meus pais fizeram exactamente aquilo que deviam. Tentaram ensinar-me os seus valores, a sua cultura, a sua religião. Quantas coisas, enquanto menores, fazemos contra a nossa vontade! É inevitável e, desde que não se ultrapassem limites da decência, é mesmo desejável que assim seja. Poderá uma educação religiosa "marcar irremediavelmente uma jovem consciência? Não poderá impedir uma mente formada de optar por diversos sistemas ético-morais?", pergunta. A minha resposta é um rotundo não, pois não estamos a falar de lavagens ao cérebro nem de incitamento à violência, não estamos a falar das madrassas afegãs ou paquistanesas, em suma. Estamos a falar de verdadeira educação, embora com um fundo religioso. Assim sendo, essa educação, muito pelo contrário, pode contribuir para "uma mente formada [...] optar por diversos sistemas ético-morais". Se optei pelo agnosticismo, foi porque fui educado como católico. Quando pergunta se "alguém conhece um crente que, depois de uns dias (ou semanas, ou meses [ou anos]) de meditação, leitura e diálogo, tenha dito serenamente: 'Talvez Deus não exista. Acho que andei enganado durante toda a vida.'", a minha resposta só pode ser um taxativo sim. Sim, conheço. Como conheço casos inversos, embora mais raros.
Pergunta-se também se, tendo filhos e achando que "a escola os corrompe moralmente", terá "o direito de os impedir de a frequentar até aos dezoito anos". Mais uma vez a resposta é sim. Tem todo o direito. Não tem, claro, o direito de negar educação aos seus filhos, mas pode perfeitamente decidir que eles não devem frequentar escolas com cujo ensino não concorda. Se não concordar com o ensino em nenhuma escola, e não os colocar em nenhuma delas, terá a obrigação de os educar sozinho. Essa escolha é permitida, e bem, pela lei.
Quando se pergunta se "não será que uma sociedade tem a obrigação de limitar a exposição das suas crianças ao poder hipnótico dos símbolos religiosos?", está a entrar por terreno muito, muito perigoso. Quem é "a sociedade" para decidir uma coisa dessas? Conhece-a? Aquilo a que se chama sociedade é um simples agregado de indivíduos com algumas características em comum, mas com opiniões inconciliáveis. Mesmo que a maioria veja os perigos que aponta na religião - e eles são quase totalmente imaginários - não teria nunca o direito de interferir com a educação que os pais preferem para os seus filhos.
É evidente que em todos estes aspectos não é possível estabelecer uma fronteira clara para a liberdade dos indivíduos. Onde termina a liberdade dos pais? A partir de onde é obrigação do estado intervir? É uma boa questão, a que não se pode responder senão de uma forma genérica: termina onde começa a liberdade dos filhos, que é uma liberdade de cidadão menor, uma liberdade não-plena. Será admissível usar burca? No espaço público geralmente não. Não porque seja um símbolo religioso, ou um sinal de opressão, mas sim porque há uma proibição legal de andar de cara tapada por questões de segurança pública. Há opressão? Combata-se. Há sinais exteriores de opressão? Investigue-se. Há sinais exteriores que, em alguns casos (tais como o caso do véu), podem significar opressão? Nada a fazer. Enquanto houver a possibilidade de a sua ostentação ser voluntária, é inadmissível proibir tais sinais pela lei.
Quanto aos símbolos satânicos, a minha resposta é que não devem ser proibidos, excepto se corresponderem a um claro apelo à violência. Enquanto assim não for, a liberdade individual está primeiro.
Diz, finalmente, que "Se eu fosse pai, preferia que os meus filhos, frequentassem uma instituição livre de símbolos religiosos (e políticos)". Está no seu direito. Para isso existem as escolas privadas, que estabelecem os seus próprios critérios livremente, e que cada um tem o direito de frequentar livremente, desde que aceite as suas regras. O problema é quando se pretende impor uma tal regra nas escolas estatais, única escolha para muitos pais em países onde a igualdade de oportunidades na educação não existe, onde o estado detém as escolas, em vez de ajudar os mais necessitados a pagar a educação dos filhos. Talvez esta história seja a demonstração cabal de que o estado, na educação, deveria reduzir-se cada vez mais a um papel regulador.
Pacheco Pereira no seu melhor
Imperdível o artigo de hoje no Público. Aliás, a esse propósito, e com algum sentimento de culpa por não o ter feito antes, quero aqui declarar que concordo totalmente com Paulo Varela Gomes:
As imagens do "exame médico" a que Saddam Hussein foi sujeito debaixo da luz das câmaras de televisão depois da sua prisão pelos norte-americanos constituem um espectáculo de humilhação pública do adversário derrotado que ultrapassam muito em indignidade aquelas a que ele próprio fez sujeitar os pilotos americanos capturados na guerra. [...]
Acontece que eu estava a ver o noticiário ao mesmo tempo que falava ao telefone com a minha mãe, Maria Eugénia Varela Gomes. Comentei enojado o que estava a ver. Ela recordou como a enfureceu o caso dos agentes da PIDE humilhados no 25 de Abril quando militares e civis armados em valentes os obrigaram a despir-se em público à luz dos faróis de automóveis. A minha mãe foi uma resistente antifascista de certa nomeada e a PIDE sujeitou-a a violentos maus tratos. Mas trata-se de uma senhora. Não tem nada que ver com o pessoal político e jornalístico da III República Portuguesa ou da Administração norte-americana.
O que se passa no Iraque
Uma análise muito interessante de Mark Danner na New York Review of Books:
President Bush's audacious project in Iraq was always going to be difficult, perhaps impossible, but without political steadfastness and resilience, it had no chance to succeed. This autumn in Baghdad, a ruthless insurgency, growing but still in its infancy, has managed to make the President retreat from his project, and has worked, with growing success, to divide Iraqis from the Americans who claim to govern them. These insurgents cannot win, but by seizing on Washington's mistakes and working relentlessly to widen the fault lines in occupied Iraq, they threaten to prevent what President Bush sent the US military to achieve: a stable, democratic, and peaceful Iraq, at the heart of a stable and democratic Middle East.
Desilusão
Ao ler um artigo interessante com um ponto de vista cristão sobre "O Senhor dos Aneis", sobretudo ao reler as passagens do livro nele reproduzidas, senti-me regressado a esse tempo da adolescência, que me parece já remoto, em que li todos os livros de Tolkien com sofreguidão. Mas... não. Não regressei. Os filmes d'"O Senhor dos Aneis" que vi nos últimos dois anos apagaram para sempre a imagem que tinha construído para cada personagem. Hoje, ao pensar em Gandalf, a cara que surge é de um actor (Ian McKellen). Roubaram-me os meus personagens.
A profunda estupidez jacobina
Ouço na BBC World Jacques Chirac a defender que França é um estado secular e, por isso, os véus e outros símbolos religiosos devem ser proibidos nas escolas. Estupidez sem limites. Desconhecimento total do significado da tolerância. Uma estranha ideia de liberdade. Estranha? Inexistente.
P.S. Até Jean-François Revel parece apoiar este absurdo. Desilusão.
P.S. Até Jean-François Revel parece apoiar este absurdo. Desilusão.
2003-12-15
Os EUA de Vitorino Magalhães Godinho
Uma genial definição dos EUA feita pelo Vitorino Magalhães Godinho (VMG) em entrevista conduzida por Carlos Câmara Leme (CCL), do Público: "continua a ser proibido estudar Darwin nas escolas, há perseguições às clínicas que praticam o aborto, há ataques à mão armada...". Outros delírios de VMG:
VMG O capitalismo ruiu, como ruiu o estalinismo. Não há mais capitalismo. O que há é uma organização de redes mafiosas que controlam o mundo.
CCL Acredita mesmo que o mundo, à escala planetária, é controlado por uma rede de mafias?
VMG Não estou a falar de mafia no sentido pejorativo. [...]
[...]
CCL Mas os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos estão garantidos, não estão?
VMG Nada está garantido! Não estamos melhor do que antes do 25 de Abril? Em certos casos, menos!
CCL Portugal não tem presos políticos.
VMG Não sei, não sei... Há países onde não é necessário ter as pessoas presas para as ter na mão. Veja o que se passa em Guantanamo.
2003-12-10
Serviço público
Prometi, há já algum tempo, dar maior destaque a uma polémica que começou com um comentário de Carlos Miguel Fernandes à minha entrada A nossa economia de direcção central: o caso do ensino da medicina e se desenvolveu a partir da minha resposta na entrada Há uma ortodoxia liberal?. Os participantes são o Carlos Miguel Fernandes, já referido, o João Miranda, do Liberdade de Expressão e do Nónio, alguém que se identifica como "eu" e eu próprio. Venho já atrasado, pois a polémica entretanto continuou no Blogue de Esquerda. Ainda assim, segue abaixo a polémica em formato mais legível:
João Miranda
A questão colocada pode ser respondida assim: a economia é um sistema complexo, no sentido em que é irredutível a um modelo simples. Ninguém possui a informação necessária para o controlar porque essa informação está dispersa por toda a sociedade. É um contrasenso alegar que a economia é um sistema complexo que tem que ser controlado, e depois esperar que os controladores sejamos nós, os humanos. É que nós estamos dentro do sistema e o acto de regulação também faz parte do sistema.
Ao contrário do que é dito, a economia não é um sistema criado pelo homem. A economia emerge espontâneamente das acções humanas. A economia emerge inclusive dos actos de regulação que são actos que contribuem para a formação do sistema como quaisquer outos.
A economia até pode ser sensível a pertrbações. Mas esse não é um argumento para a regulação. É na ralidade, um argumento contra a regulação porque nesse caso todas as acções imprevisíveis, inclusive as acções de regulação.
Só mais uma coisa:
Não existem reguladores fora da economia. Vamos supor que criamos uma entidade REGULADORA para controlar a ECONOMIA. O sistema REGULADORA + ECONOMIA para a ser um sistema sobre qual podemos colocar as mesmas questões que nos levaram a criar a entidade reguladora. Como é que sabemos se este novo sistema REGULADORA + ECONOMIA é auto-regulável? Não poderá cair no caos? No fundo, esta é outra versão da velha questão: quem regula os reguladores?
eu
As minhas dúvidas:
Caríssimos João Miranda e Picuinhas, desejo que o liberalismo seja o caminho e até tenho expectativas libertárias. Tenho contudo algumas duvidas incómodas. Dado é disso que aqui se fala....
Para lá da economia, parece-me que o poder per si (seja politico, de uma religião, na estrutura familiar, etc) é uma aspiração humana. Existem em todo o mundo numerosos exemplos da organização de poderes fortíssimos que não nascem nem dependem de estado algum ? (as máfias, os carteis, o poder religioso, etc). Ao contrário de recear o caos, não é bem mais provável que o risco seja exactamente o contrário: o da organização espontânea de outros poderes, organizados para exercer uma ?regulação? a favor dos seus interesses? (neste ponto prefiro sofrer o poder porventura excessivo de um poder/estado visível que posso eleger).
O desejo da liberalização assenta sempre no pressuposto da existência de uma justiça eficaz, imparcial, forte. Como a garantir essa força se o próprio estado for esvaziado de poder e sabendo que a simples existência de um poder forte visível é um elemento dissuasor?
E ainda, se olharmos o mundo como um mercado global, e sendo o mundo um espaço restrito, -se não reconhecermos a capacidade de regular com perspectivas futuras, ou na educação- a actuação livre não configurará por sua vez uma ?tragédia dos comuns? à escala global?
João Miranda
Quanto à primeira pergunta, a maior parte dos liberais defende o monopólio da força por parte do estado e a proíbição da iniciação da força. O estado não precisa de ter o controlo da economia para poder controlar a iniciação da força.
Quanto à tragédia dos comuns, ela só ocorre se existir um abuso da propriedade comum por parte de alguns. À luz do liberalismo, essas violações devem ser limitadas, de preferência através da privatização de bens comuns. Mas o problema da tragédia dos comuns à escala global está limitada a meia dúzia de casos (poluíção atmosférica, marítima, pescas e mais alguns recursos insubstituíveis).
Carlos Miguel Fernandes
[...]
Começo pelos adjectivos. Quando eu falei em 'mais ou menos lúcido' queria dizer que o achava suficientemente lúcido para reflectir sobre uma questão que eu julgo importante. Uma leitura atenta do seu blog levava-me a pensar isso. E acho que não me enganei. Quanto ao significado da palavra 'liberal', estamos de acordo: é suficientemente vago e abrangente para que nos entendamos em curtas frases. Utilizei o prefixo neo para distinguir uma abordagem mais radical do capitalismo e da sociedade (talvez aquilo que designa como anarco-capitalismo). É preciso não esquecer que 'liberal' tem uma conotação que depende até do país em que é pronunciada (recordo que nos países anglo-saxónicos, 'liberal' tem uma conotação esquerdista). Reparo, pelos seus textos, que não é um neo-liberal no sentido que eu dou à palavra. Até penso que as nossas ideias não estão assim tão afastadas como possa parecer.
Está na altura de esclarecer que eu acredito no mercado livre. Já visitei vários países do leste da Europa e tenho a certeza absoluta que o modelo de estado centralizador e totalitário falhou, não acompanhou a mudança do mundo e morreu sem deixar descendência (e mesmo a hipótese de que, em algum período da humanidade, o marxismo foi uma ideia sensata, deixa-me muitas dúvidas). Aliás, tenho relutância em me deslocar a Cuba, nas férias, porque me choca o défice de liberdade de expressão e a miséria gerada pelo ?socialismo? de Castro. Conheço muitos liberais que não se incomodaram com a situação e lá foram para a ilha.
Mas acredito num mercado livre suficientemente aberto para permitir intervenção estatal em situações que o justifiquem. E baseio esta crença em observações e analogias, e não na fé.
Posso conceder que o mercado global é um sistema complexo e dinâmico e poderá, teoricamente, ser modelado como o clima da Terra, por exemplo. Posso acreditar que sim, não é uma ideia chocante, tem um grau de probabilidade bastante elevado. Se for verdade, estamos, provavelmente, perante um exemplo de auto-organização. E, se assim for, as suas características impedem-no de cair no caos ou em poços de atracção (ver Kaufman). Mas não é esta uma descrição do corpo humano? Não estamos nós constantemente à beira do caos (as leis da termodinâmica o dizem)? No entanto as nossas células mantêm as suas funções ao longo das nossas vidas, os músculos não se misturam com a pele, a morfologia mantém-se constante e não nos transformamos numa massa informe de átomos. Mas por vezes ficamos doentes. O que fazemos nessa altura? Deixamos o tempo correr e esperamos para ver o que acontece? Não. Tentamos reparar o problema. E se pudéssemos fazer o mesmo com o clima, quem se atreveria a dizer que o deixássemos em paz sabendo que podíamos evitar um dilúvio ou uma seca prolongada (estou a entrar no domínio da ficção científica mas a história já nos ensinou a evitar julgamentos precipitados). Aquilo que eu defendo é que se encarem os modelos económicos como sistemas complexos que, mesmo que tenham mecanismos de auto-organização e auto-regulação, podem ser manipulados sempre que isso possa evitar consequências negativas para o indivíduo.
Escreve Picuinhas, a propósito da sua reacção ao seminário de Holland: ?Esse entusiasmo é temperado por um forte cepticismo quanto à possibilidade de alguma vez se poder fazer alguma previsão certeira e não-trivial baseada em simulações desse tipo de sistemas?. É a velha questão do determinismo. Penso que era Pascal que dizia ?dêem-me as condições iniciais e conto-vos a história do mundo?. A mecânica quântica veio refrear o ímpeto determinista (embora não tenha convencido Einstein, que acreditava que o velho lá de cima não jogo aos dados). Por isso o cepticismo de Picuinhas é perfeitamente natural. Mas o espírito deve estar aberto. Imaginem o cepticismo, há mil anos atrás, em relação a tantas banalidades do nosso quotidiano. Eu tenho feito investigação na área dos sistemas complexos adaptativos (particularmente no âmbito dos Algoritmos Genéticos, criados nos anos 70, por Holland, para estudar estes sistemas). E reconheço o potencial poder da ciência da complexidade. Se vai ser a ciência do séc. XXI, como afirmou Holland em Lisboa, não sei. Mas vai ser muito importante.
"Repare que a posição liberal não é, nem pretende ser, científica.", escreve Picuinhas. Uma questão interessante. Acredito que não seja uma posição científica. Mas não aspirar a sê-lo deixa-me preocupado. Talvez seja a minha racionalidade excessiva a falar. As minhas posições, ideias ou conceitos procuram sempre um fundamento científico. Se tiverem esse carácter, posso sempre provar que estão erradas (mesmo que isso destrua a minha base moral). Nesse aspecto sou seguidor de Karl Popper - é ciência tudo aquilo que pudermos provar, ou tentar provar, que está errado. Parece um contra-senso mas não é. Uma leitura mais atenta do filósofo talvez esclareça algumas coisas que este pequeno espaço não permite.
"A realidade não parece demonstrar a ideia de que um sistema económico ou social cai necessariamente no caos ou em ciclos finitos perpétuos. Aliás, a ideia de que cai necessariamente nesses comportamentos é que me parece uma extrapolação perigosa de resultados científicos, mas teria de ler o livro para o poder afirmar.". Tem toda a razão. Aqui não me expliquei bem e ao reler as minhas próprias palavras percebo o erro. Acima, já referi que aceito que os sistemas económicos possam ser auto-organizados. Mas eu tenho alguma informação sobre o assunto. Aquilo que eu queria perguntar era se os liberais acreditavam nos seus modelos por uma questão de fé ou se estavam suficientemente bem informados sobre os últimos avanços no estudo da complexidade. Porque, nas condições da primeira hipótese, podem estar de acordo com as conclusões que poderiam observar nas condições da segunda hipótese, mas sem as complicações adicionais.
"Pergunta-se se, sendo o comportamento dos sistemas envolvendo agentes humanos essencialmente imprevisível, não será perigoso «deixar esses sistemas correr livremente, correndo o risco de observar desastres, mesmo sabendo que poderiam estabilizar posteriormente?» Responder-lhe-ia que não, que se alguém puder antecipar um desastre deve obviamente fazer tudo ao seu alcance para o evitar.". Parece que concordamos. Mas logo a seguir: "Curiosamente, no entanto, as sociedades mais liberais não parecem particularmente sujeitas a desastres.". Acha que não? Parece que já tivemos alguns exemplos na História recente que nos devem fazer reflectir na exactidão desta afirmação (com isto não quero dizer que os modelos menos liberais não estão sujeitos ao desastre; talvez exista um equilíbrio e a defesa desta ideia é o objectivo principal deste comentário).
"Mas a posição de um liberal é a de que, com o nosso conhecimento individual limitado e com uma capacidade de previsão reduzida, é geralmente melhor deixar as coisas correr do que limitar as liberdades com medo de desastres largamente imaginários.". A posição de um cientista é a de superar a limitação do conhecimento e melhorar as capacidades de previsão (por favor não transformem esta discussão em mais uma batalha da tão actual "guerra das ciências").
Permitam-me agora comentar os comentários. O João Miranda diz que "a economia é um sistema complexo, no sentido em que é irredutível a um modelo simples.". Não se ofenda mas esta frase parece vazia de conteúdo. Teríamos que definir modelo simples, já estamos a definir sistema complexo sobre esse conceito. E isso não foi feito. Além disso, deveria definir-se em relação outro aspecto: o reducionismo. Muitos pensadores não aceitam este principio, logo, para esses, nada se pode reduzir a um modelo simples.
Eu não disse que a economia é um sistema complexo que tem de ser controlado. Apenas disse que, se a economia nos permite intervenções pontuais, porque não fazê-lo? Quanto ao facto de estarmos dentro do sistema e o controlarmos não entendo o problema. Já ouviu falar do conceito de agente (o clip que eu vejo neste momento, no canto superior esquerdo no meu visor, é um agente)?.
Aceito que a economia não seja um sistema criado pelo homem, embora esta questão justificasse uma discussão filosófica mais profunda, que poderia envolver a cultura e a linguistica. Mas os modelos económicos são criados pelo homem. A não ser que tenhamos uma visão radical dos "memes" (entidades definidas pelo biólogo evolucionista Richard Dawkins e que pretendem representar as ideias, fazendo a analogia com "genes"). Nesse caso NENHUMA ideia foi criada pelo homem. Todas tiveram uma origem proto-memética, e propagaram-se pelos cérebros, ao longo da história cultural do homo sapiens, tal como os genes se propagaram no ADN através da história do planeta. Mas nem o mais radical darwinista cultural consegue defender convenientemente esta questão.
Embora o último parágrafo do primeiro comentário de João Miranda esteja pouco compreensível deduzo que queira dizer que as acções de regulação, por serem imprevisíveis, podem causar perturbações indesejáveis. Parece-me incoerente. Se o sistema é sensível a perturbações e, ao mesmo tempo, auto-regulado, é também, segundo posso depreender, imune a perturbações (no sentido em que é estável). Nesse caso, se o homem faz parte do sistema, como é que as suas perturbações ou intervenções serão piores do aqueles que podemos esperar de outras entidades (exteriores ao sistema? Segundo o que entendi do raciocínio exposto, não existem).
No seu segundo comentário João Miranda fala do sistema REGULADORA+ECONOMIA. Gostava de saber se REGULADORA+MODELO ECONÒMICO é a mesma coisa, na sua opinião. Só assim poderei comentar convenientemente.
Noutro comentário podemos ler que "O desejo da liberalização assenta sempre no pressuposto da existência de uma justiça eficaz, imparcial, forte.". Este é uma questão que merece ser amplamente debatida, até porque vivemos em Portugal, e todos sabemos como funciona a nossa sociedade.
João Miranda
A economia é um sistema complexo no sentido em que não pode ser apreendida por uma única mente. Quando falo num sistema simples estou a falar de sistemas com poucos graus de liberdade e que por isso podem ser facilmente compreendidos.
A economia não pode ser apreendida por nenhuma mente ou por nenhum conjunto restrito de mentes. Isto acontece porque, em economia, os mais ínfimos detalhes são importantes. Nunca se sabe, por exemplo, de onde virá a próxima inovação. A economia só pode ser apreendida parcialmente (muito parcialmente) por cada mente individual. Este facto por si só implica que só o controlo descentralizado é eficiente.
Quando se fala em regulação, fala-se em regulação por um órgão central. Fala-se da planificação da economia e da sociedade por parte de um órgão central. O problema deste tipo de regulação está no facto de os reguladores serem tão humanos como os humanos que pretendem regular. No entanto, estes reguladores não possuem nem os meios, nem a capacidade para prever as consequências dos seus actos reguladores.
A vantagem do liberalismo está precisamente no facto de a regulação ser feita de forma descentralizada por quem está mais interessado no desenrolar dos acontecimentos, por quem possui a informação necessária para realizar a regulação e por quem tem a legitimidade para agir.
À luz do liberalismo, o caos não é necessáriamente um problema. Uma sociedade dinâmica terá forçosamente periodos de destruíção criativa. Novos produtos e novas ideias provocam variações abruptas e imprevisíveis em determinadas variáveis do sistema. Os liberais não prometem a estabilidade nem a consideram particularmente desejável.
No entanto, quem acha que a economia é um sistema caótico e que isso não é desejável, não deve ter ilusões. Um sistema caótico com biliões de graus de liberdade não é previsível e por isso não pode ser controlado de forma eficaz por uma autoridade central.
REGULADORA+ECONOMIA e REGULADORA+MODELO ECONÒMICO não são a mesma coisa. Uma economia é um sistema real, físico. Um modelo económico é uma abstracção inventada pelos seres humanos. As economias reais não obedecem aos planos humanos. Emergem das acções humanas. E os humanos tendem a agir contra os seus próprios planos ou contra os planos dos seus dirigentes.
Há também uma diferença entre determinismo ontológico e determinismo epistemológico que é importante. Se o determinismo ontológico for verdadeiro, o estado actual do universo determina univocamente todos os estados futuros. Mas isso não significa que o futuro seja previsível (determinismo epistemológico). A economia é um caso em que o determinismo epistemológico é impossível pelo simples facto que é impossível saber a cada momento qual é o estado actual da economia (que é um sistema vasto em que todos os detalhes são relevante). E mesmo que fosse possível determinar o estado actual da economia, continuaria a ser impossível calcular o efeito dos actos de regulação no seu estado futuro porque não existem meios computacionais suficientemente poderosos. Mas mesmo que tudo isso fosse possível, o próprio acto de previsão tenderia a modificar o comportamento dos agentes económicos tornando a previsão inútil.
Por outro lado, se a eonomia for um sistema caótico, então o determinismo epistemológico é impossível porque os sistemas caóticos são sensíveis às condições inciais. Não bastaria conhecer as condições inciais. Seria necessário conhecer as condições iniciais com uma precisão infinita.
O estudo de sistemas complexos que tem merecido a atenção dos investigadores nos últimos 30 anos tem entre os seus precursores Friedrich Hayek, que já nos anos 20 se dedicava a estes problemas. A ideia base do trabalho de Hayek é a de que um sistema complexo como a economia não pode ser controlado por uma autoridade central porque a informação necessária para que o controlo seja eficiente está dispersa por todo o sistema e nunca está todo acessível a uma única pessoa.
Um bom livro para se entender as ideias de Hayek sobre a economia como um sistema complexo é "The Constitution of Liberty" onde é explicada a noção de Cataláxia.
Carlos Miguel Fernandes
O Sr. João Miranda tem uma ideia muito vaga, e por vezes errónea, das teorias da complexidade, do caos e da evolução, embora seja de louvar o seu interesse por essas questões (desde que não ponha metade da informação de parte para poder justificar a sua ideologia). Parece confundir sistemas complexos com sistemas caóticos e algumas das suas afirmações têm graves problemas de precisão (mesmo tendo em conta o espaço que utilizamos; eu próprio cometi um grave erro no comentário que originou esta discussão, e que ainda agora, ao fim de várias intervenções, tem os seus efeitos).
Por exemplo, João Miranda escreve que ?Não bastaria conhecer as condições iniciais. Seria necessário conhecer as condições iniciais com uma precisão infinita.?. Esta frase não faz sentido. Eu não sei a diferença entre conhecer as condições iniciais e conhecê-las com precisão infinita. Aliás, nem sei o que é conhecer com precisão infinita.
Mas como não posso escrever aqui um tratado sobre complexidade (nem conseguia) sugiro a leitura de um pertinente artigo: Is Hayek's Social Theory an Example of Complexity Theory?
Assim, podemos estudar a teoria da complexidade e a ideias de Friederich Hayek, que parece ser o guru ideológico de alguns liberais. O artigo não pretende diminuir o trabalho de Hayek, antes pelo contrário. Mas pretende enquadrá-lo numa perspectiva moderna, e de cariz científico, da teoria da complexidade. Um comportamento que me deixa perplexo é o apego que algumas pessoas têm aos pensadores que produziram textos e teorias que corroboram as suas crenças políticas, sociais ou morais. Uma vez descoberto o mestre, parece que tudo o que o engenho humano produziu antes e, especialmente, depois desses trabalhos não tem valor suficiente para, pelo menos, uma pequena vista de olhos (será que o João Miranda esteve no seminário de John Holland?...o autor deste blog (Picuinhas) teve interesse e curiosidade suficiente para lá ir).
Outro comportamento habitual é a leitura transversal de algumas obras. O exemplo do darwinismo é esclarecedor. Quantas teorias sociais e políticas foram forjados sobre uma interpretação abusiva do autor da "Origem das Espécies"? Algumas: eugenia, racismo, darwinismo social. Muitas expressões anglo-saxónicas foram criadas baseando-se nas cruéis relações inter-espécies do mundo animal. Para aqueles que gostam de as aplicar na descrição de relações humanas, aconselho um pequeno trecho do livro Moby Dick, de Herman Melville, que ficou conhecido como "Sermão aos Tubarões". Leiam o livro e encontrá-lo-ão.
Uma das falácias do (algum) discurso liberal, também baseada no darwinismo e fortemente influenciada pelo trabalho de Hayek, é a ideia de que a procura do que é melhor para nós conduz à optimização do conjunto (sociedade). Afirmá-lo é recusar décadas de investigação científica; é ignorar Von Neumman, a teoria dos jogos ou o dilema do prisioneiro; é esquecer os avanço na matemática e na teoria dos conjuntos; é recusar o equilíbrio de Nash. Felizmente, alguma teoria económica (mesmo liberal) vem sendo desenvolvida de acordo com estes novos paradigmas.
Sugiro uma reflexão sobre a última frase do artigo que referi.
João Miranda
O Carlos cria um Homem de Palha para melhor me atacar. Não adianta porque eu não defendo os argumentos que ele ataca.
Só para dar um exemplo, não se pode concluir dos trabalhos de Hayek que "a procura do que é melhor para nós conduz à optimização do conjunto (sociedade)."
Conclui-se outra coisa mais importante: o conceito de optimização global da sociedade não faz sentido porque pressupõe valores absolutos. Hayek defende , e bem, que em economia todos os valores são subjectivos e incomensuráveis.
O argumento segundo o qual "a procura do que é melhor para nós conduz à optimização do conjunto (sociedade)" é um argumento secundário porque pressupõe valores comuns. Se admitirmos esse pressuposto, o que numa discussão com um socialista pode ser útil, o argumento é sólido na maior parte das situações.
Os liberais conhecem muito bem a teoria dos jogos e o dilema do prisioneiro. E por isso mesmo é que são contra a propriedade colectiva e contra o controlo político da actividade económica. O estado é uma entidade demasiado vulnerável à tragédia dos comuns.
Quanto ao resto, o Carlos não respondeu aos meus dois argumentos fundamentais:
Carlos Miguel Fernandes
Não pretendo atacá-lo (estou a ser sincero). Mas não podia deixar passar certas imprecisões, especialmente porque servem de base a outras conclusões.
Um exemplo do seu último comentário: Pergunta-me "como é que se controla um sistema caótico com biliões de graus de liberdade?". Afinal, a economia é um sistema complexo ou caótico? Na abordagem moderna da complexidade existe diferenciação entre os dois termos. E fala de sistema caótico com biliões (onde foi buscar este valor?) de graus de liberdade. Isso significa que existem sistemas caóticos com poucos graus de liberdade? Ou então está a distinguir daqueles que têm apenas milhões de graus? Podem parecer questões secundárias garanto-lhe mas não são. Devemos comunicar com precisão.
A primeira questão que põe pode ser abordada de duas formas:
Eu posso controlar o nível de um depósito de um líquido sem saber a densidade do mesmo, nem a sua cor ou cheiro.
Mas a questão nem sequer é essa. O que pretende a teoria da complexidade (pelo menos no estado em que se encontra a investigação teórica e o potencial tecnológico) não é um controlo preciso baseado em toda as variáveis do sistema. O que se procura é o padrão que, segundo se acredita e a observação tem confirmado, todos os sistemas complexos apresentam (ao contrário dos sistemas caóticos que, aparentemente, não revelam padrões de comportamento). Se, com a compreensão do padrão, conseguirmos prever comportamentos, mesmo que qualitativos, porque será que não podemos intervir, partindo do princípio que a nossa intervenção faz parte do sistema logo, o padrão que conhecemos incorpora a intervenção.
Eu nunca disse que devemos ou podemos controlar cientificamente a economia. Mas, tal como há séculos atrás, começámos a prever, com muita exactidão, o movimento dos planetas, será que um dia não seremos capazes de prever (com alguma precisão, não quero quantificar) o comportamento de um sistema complexo (ou mesmo de um sistema caótico, mas isso levaria a uma reformulação da teoria). Diga-me uma coisa: se, com a ajuda das leis de Newton, fosse prevista uma colisão de um cometa com a Terra, daqui a cem anos, devíamos esperar o evento sem nada fazer. É que o universo seguirá o seu curso normal. Não é por a humanidade desaparecer que estamos perante um comportamento caótico, pois não? Para quê intervir, então?
Não é de um controlo exterior, por parte de alguma entidade poderoso, que eu falo. Nós fazemos parte do sistema. Se conseguirmos prever o resultado das nossas acções, podemos 'controlar' o sistema, mesmo sendo parte integrante do mesmo.
Ainda há alguns pontos do seu último comentário que gostaria de abordar, mas voltarei mais tarde.
[...]
João Miranda
Um sistema complexo é um sistema que está para alem das capacidades cognitivas de qualquer ser humano ou de qualquer análise matemática e mesmo dos meios computacionais mais vulgares.
Algumas das características dos sistemas complexos são as seguintes:
O número de graus de liberdade de um sistema é igual ao número de condições inciais, ao número de variáveis e igual ao número de equações que descrevem o sistema. Uma economia é um sistema complexo, tendo um elevado número de graus de liberdade, porque o número de variáveis é extremamente grande. Basta pensar que uma economia depende de cada uma das pessoas que a constitui, dos meios disponíveis e das restrições ambientais.
Um sistema complexo como a economia pode ter ilhas de caos. Isto é, algumas variáveis que por períodos mais ou menos longos se comportam de forma imprevisível para um observador local. Ou então zonas em que os padrões macroscópicos se desfazem. No entanto, falta provar que o caos é necessariamente mau. Pode haver aqui uma ilusão colectivista que leva algumas pessoas a defender que determinados padrões macroscópicos são mais importantes que a liberdade microscópica dos agentes.
Caos não deve ser confundido com o significado habitual da palavra caos. O choque de um cometa com a Terra não é certamente um fenómeno caótico, principalmente se esse acontecimento puder ser previsto com 100 anos de antecedência. Os acontecimentos caóticos são, por definição, imprevisíveis.
Não é possível controlar a economia da mesma forma que se controla um tanque por três razões fundamentais:
Só para dar um exemplo, as formigas de um formigueiro geram uma paisagem ordenada que se distingue perfeitamente da paisagem onde não existem formigas. Mas nada na visão de um formigueiro nos garante que nenhuma formiga foi sacrificada para se conseguir aquele resultado. Uma sociedade injusta pode, mesmo assim, gerar padrões extremamente interessantes.
Carlos Miguel Fernandes
Não tenho tempo agora para lhe responder convenientemente, mas não posso deixar passar em claro o seu comentário sobre o cometa. Eu nunca escrevi que o choque do cometa é um acontecimento caótico. Por favor, releia as minhas palavras. Vai ver que não estou a fazer confusão nenhuma com os termos. Tenho alguma confiança de que o (muito) tempo que gasto a estudar complexidade, auto-organização e sistemas adaptativos me permite ter uma abordagem correcta do conceito de caos. Mas este pequeno pormenor faz-me recear que esteja a ser mal compreendido. Não sei se a culpa é do emissor ou do receptor mas vou tentar fazer um esforço para ser mais claro.
João Miranda
De facto, o meu comentário não está correcto. O essencial do que eu quis dizer foi que "caótico" não é sinónimo de "indesejável".
Quanto ao facto de existirem perigos previsíveis que podem ser evitados, os liberais não defendem que devemos ficar de braços cruzados. O que os liberais defendem é que a melhor forma de lidar com qualquer perigo é através de um sistema em que as decisões são tomadas de forma descentralizada.
Carlos Miguel Fernandes
Mas 'caótico' deve ser sinónimo de 'indesejável', pelo menos no sentido correcto do termo. O que o João Miranda está referir não é caos mas perturbações que levam o sistema, temporariamente, a dimunir a sua aptidão. Mas, a médio prazo, a perturbação pode levá-lo a óptimos que ainda não tenham sido descobertos. Se for isto o que quer dizer penso que tem razão.
Não é um controlo central que eu defendo, mas na verdade não consigo descobrir qual será a melhor forma de dimensionar os vários centros de decisão. Porque a questão importante é esta: a dimensão dos centros de decisão. Com um grande centro de decisão, em que todos os indivíduos trabalham para o bem do conjunto, temos um sistema em regime estático (Kauffmam até lhe chama regime Estalinista). Mas um sistema em que cada indivíduo age no seu próprio benefício está em constante mutação (e, entre os altos e baixos, e sua aptidão média não é melhor do que a de um sistema estático). É o que se chama, na teoria da complexidade moderna, um sitema caótico. Os sistemas complexos situam-se entre estes dois extremos (estas conclusões foram baseadas em experimentacão). A dificuldade consiste em perceber qual a dimensão correcta das entidades (conjuntos de indivíduos, retalhos (patches), centros de decisão, podemos chamar-lhes muita coisa) para que a evolução (prefiro adapatação) se encontre no limiar do caos. É este o conceito da auto-organização. Por algum mecanismo que ainda não foi entendido, todo o sistema complexo evolui (evolves) no limiar do caos. Então, quando falamos de economia, falamos de um sistema cujo comportamento pode cair em três estados: caótico, complexo ou estático (ordered regime, ainda não encontrei um boa tradução para este estado). O modelo económico que escolhemos (aqui já estou a especular) deve estar mais preocupado com a dimensão dos 'centros de decisão' (não sei se é a melhor expressão, estou a tentar seguir o raciocínio de João Miranda) do que em centralizar ou não centralizar. Mas qualquer que seja o ponto de vista, vais haver sempre uma espécie de centralização. Ou será que, tal como na democracia, conseguiremos dividir esse centro em retalhos (depois aparece o problema da divisão dos retalhos em sub-retalhos, mas é inevitável num sistema).
Picuinhas
Não tenho tempo agora para dar a minha opinião sobre todos estes comentários. Mas chamou-me a atenção a ideia de que há um "óptimo" para uma sociedade, que pode ser descoberto ou aproximado melhor de uma forma distribuída (ou descentralizada). O que é o óptimo de uma sociedade? Quem o define? O governo? Um conjunto de iluminados? Cientistas? É decidido democraticamente? Afinal, quem toma as decisões democráticas são os mesmos agentes de que depende o comportamento do sistema. Esses agentes são seres humanos, e são os mesmos que teorizam acerca do próprio sistema e que, ao fazê-lo, lhe alteram o comportamento de forma que não podem prever. Quanto ao caos, eu diria que as nossas sociedades estão bem longe de estar nesse regime. Estão, isso sim, bem mais próximas do "ordered regime".
Por outro lado, quanto mais ouço falar da investigação em sistemas complexos, mais o assunto me fascina. É perfeitamente legítimo, e interessante, tentar tirar conclusões qualitativas (ou mesmo quantitativas) acerca do comportamento das nossas sociedades, através da simulação de sistemas complexos. Mas seria uma enorme arrogância considerar que os modelos são tão bons que essas conclusões devam moldar as nossas políticas. Espero sinceramente que isso não aconteça. Para políticas de base "científica" já basta o marxismo.
João Miranda
Alguns comentários:
Gostei da da simulação. Não há dúvida: a melhor forma de prever o futuro é esperar que aconteça.
Carlos Miguel Fernandes
Ao Picuinhas:
Também não acredito que possamos definir o óptimo (global) de uma sociedade (existem mesmo classes de problemas ? reais e teóricos ? onde não é possível conhecer previamente o óptimo global). Mas, considerando o bem estar dos indivíduos, podemos dizer alguma coisa quanto ao estado dessa sociedade. Além disso, os óptimos talvez estejam em constante mudança. Não é uma paisagem de aptidão (fitness landscape) imutável. Aquilo que eu tentei dizer foi o seguinte: um sistema a evoluir no limiar do caos tem mais possibilidades de saltar para óptimos locais mais elevados. É a mesma coisa que acontece quando subimos a uma colina e verificamos que, ao lado, existem outras mais elevadas. Para conseguir atingir o seu topo, é necessário sair do local onde nos encontramos. E para que isso acontece temos que descer. Num regime estático (marxista ou estalinista) isso não é possível. Uma vez encontrado um ponto aparentemente estável não se vai para mais lado nenhum. Como costuma dizer um amigo meu, o marxismo do leste europeu era muito bonito mas, mesmo que não tivesse mais problemas, havia um problema incontornável: o nivelamento por baixo. Basta comparar os países que faziam parte do pacto de Varsóvia com a antiga Jugoslávia que, apesar de se considerar como um país socialista, adoptou um regime de mercado livre. Mas um regime caótico também não me parece desejável (dêem-me exemplos de sistemas que se desejem caóticos, mas considerando uma abordagem moderna da teoria da complexidade). A oscilação e instabilidade inerentes obrigariam a uma mudança muito rápida de aptidões, sem que as que fossem entretanto adquiridas pudessem ser convenientemente exploradas.
É verdade que os seres humanos fazem parte do sistema. Se não fizessem e se as suas acções não produzissem efeitos de quantificação difícil, talvez não fosse um sistema complexo, não é?
Fazendo a analogia com a teoria da auto-organização não me parece que a nossa sociedade esteja no ?caos? nem no ?ordered regime?, embora alguns sub-sistemas possam apresentar essas características. Se, como se acredita, a economia mundial é um sistema complexo, tenderá sempre para um regime ?no limiar do caos? (o no limiar do ?ordered regime?, é a mesma coisa).
Mais importante do que moldar as nossas políticas é tentar compreender as conseqüências das mesmas. Nem que seja para satisfazer a natural curiosidade humana.
Respondei a João Miranda noutra altura, até porque ele colocou muitas questões e observações pertinentes.
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Agora, com mais tempo, vou tentar comentar as últimas observações de João Miranda. Mas antes devo dizer que, embora amenizado nos último comentários, o tom do seu discurso continua a não ser o mais adequado. Penso que está convencido que eu tento arranjar provas irrefutáveis ou justificações científicas para as minhas crenças. Mas não é verdade. Só quero levar as pessoas a pensar um pouco nos fenómenos que as rodeiam e no seu próprio sistema de crenças. Não pretendo dar respostas, apenas fazer perguntas. Tento ainda descrever algumas ferramentas que conheço e que podem (ou não) ajudar no processo. Tenho uma abordagem das questões que se baseiam no método científico, é verdade. Evito estabelecer bases morais ou ideológicas. Uma das forças da ciência está na forma como tenta encontrar os pés de barro dos seus ídolos para melhor os destruir, não tentando escondê-los para mais facilmente erigir outros edifícios, com fundações do mesmo material (embora exista, mesmo dentro da ciência, tendência para o fazer; talvez seja humano, ninguém gosta de ver as bases de uma vida inteira de investigação cair à sua frente). Se Einstein não tivesse questionado a universalidade das leis de Newton, não teria desenvolvido a teoria da relatividade. E se o físico português João Magueijo adoptasse uma postura de crença, nunca teria questionado Einstein e a constância temporal da velocidade da luz (independentemente de estar correcto, ainda é cedo para o dizer). Esta autofagia da ciência é a idiossincrasia que lhe permite estar em constante mudança e permanentemente viva.
Vamos aos comentários dos comentários:
Deixo-vos com um parágrafo de John Holland que encontrei no livro ?A Ideia Perigosa de Darwin?, do filósofo norte-americano Daniel Dennet. Não é uma obra que trate directamente do assunto que estamos a discutir, mas pode ser que até nos forneça algumas pistas. Por isso, e pela excelência do livro, aconselho a sua leitura (editora Temas e Debates).
Este parágrafo encontra-se num capítulo que questiona abordagem de Noam Chomsky ao problema da linguagem humana:
Esqueci-me da referência da citação. Vi-a no livro de Dennet mas originalmente vem de: Holland, John, 1992. "Complex Adaptive Systems" Daedalus, Inverno, pág. 25. [Nota: Não consegui encontrar o livro na Amazon.]
João Miranda
A questão colocada pode ser respondida assim: a economia é um sistema complexo, no sentido em que é irredutível a um modelo simples. Ninguém possui a informação necessária para o controlar porque essa informação está dispersa por toda a sociedade. É um contrasenso alegar que a economia é um sistema complexo que tem que ser controlado, e depois esperar que os controladores sejamos nós, os humanos. É que nós estamos dentro do sistema e o acto de regulação também faz parte do sistema.
Ao contrário do que é dito, a economia não é um sistema criado pelo homem. A economia emerge espontâneamente das acções humanas. A economia emerge inclusive dos actos de regulação que são actos que contribuem para a formação do sistema como quaisquer outos.
A economia até pode ser sensível a pertrbações. Mas esse não é um argumento para a regulação. É na ralidade, um argumento contra a regulação porque nesse caso todas as acções imprevisíveis, inclusive as acções de regulação.
Só mais uma coisa:
Não existem reguladores fora da economia. Vamos supor que criamos uma entidade REGULADORA para controlar a ECONOMIA. O sistema REGULADORA + ECONOMIA para a ser um sistema sobre qual podemos colocar as mesmas questões que nos levaram a criar a entidade reguladora. Como é que sabemos se este novo sistema REGULADORA + ECONOMIA é auto-regulável? Não poderá cair no caos? No fundo, esta é outra versão da velha questão: quem regula os reguladores?
eu
As minhas dúvidas:
Caríssimos João Miranda e Picuinhas, desejo que o liberalismo seja o caminho e até tenho expectativas libertárias. Tenho contudo algumas duvidas incómodas. Dado é disso que aqui se fala....
Para lá da economia, parece-me que o poder per si (seja politico, de uma religião, na estrutura familiar, etc) é uma aspiração humana. Existem em todo o mundo numerosos exemplos da organização de poderes fortíssimos que não nascem nem dependem de estado algum ? (as máfias, os carteis, o poder religioso, etc). Ao contrário de recear o caos, não é bem mais provável que o risco seja exactamente o contrário: o da organização espontânea de outros poderes, organizados para exercer uma ?regulação? a favor dos seus interesses? (neste ponto prefiro sofrer o poder porventura excessivo de um poder/estado visível que posso eleger).
O desejo da liberalização assenta sempre no pressuposto da existência de uma justiça eficaz, imparcial, forte. Como a garantir essa força se o próprio estado for esvaziado de poder e sabendo que a simples existência de um poder forte visível é um elemento dissuasor?
E ainda, se olharmos o mundo como um mercado global, e sendo o mundo um espaço restrito, -se não reconhecermos a capacidade de regular com perspectivas futuras, ou na educação- a actuação livre não configurará por sua vez uma ?tragédia dos comuns? à escala global?
João Miranda
Quanto à primeira pergunta, a maior parte dos liberais defende o monopólio da força por parte do estado e a proíbição da iniciação da força. O estado não precisa de ter o controlo da economia para poder controlar a iniciação da força.
Quanto à tragédia dos comuns, ela só ocorre se existir um abuso da propriedade comum por parte de alguns. À luz do liberalismo, essas violações devem ser limitadas, de preferência através da privatização de bens comuns. Mas o problema da tragédia dos comuns à escala global está limitada a meia dúzia de casos (poluíção atmosférica, marítima, pescas e mais alguns recursos insubstituíveis).
Carlos Miguel Fernandes
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Começo pelos adjectivos. Quando eu falei em 'mais ou menos lúcido' queria dizer que o achava suficientemente lúcido para reflectir sobre uma questão que eu julgo importante. Uma leitura atenta do seu blog levava-me a pensar isso. E acho que não me enganei. Quanto ao significado da palavra 'liberal', estamos de acordo: é suficientemente vago e abrangente para que nos entendamos em curtas frases. Utilizei o prefixo neo para distinguir uma abordagem mais radical do capitalismo e da sociedade (talvez aquilo que designa como anarco-capitalismo). É preciso não esquecer que 'liberal' tem uma conotação que depende até do país em que é pronunciada (recordo que nos países anglo-saxónicos, 'liberal' tem uma conotação esquerdista). Reparo, pelos seus textos, que não é um neo-liberal no sentido que eu dou à palavra. Até penso que as nossas ideias não estão assim tão afastadas como possa parecer.
Está na altura de esclarecer que eu acredito no mercado livre. Já visitei vários países do leste da Europa e tenho a certeza absoluta que o modelo de estado centralizador e totalitário falhou, não acompanhou a mudança do mundo e morreu sem deixar descendência (e mesmo a hipótese de que, em algum período da humanidade, o marxismo foi uma ideia sensata, deixa-me muitas dúvidas). Aliás, tenho relutância em me deslocar a Cuba, nas férias, porque me choca o défice de liberdade de expressão e a miséria gerada pelo ?socialismo? de Castro. Conheço muitos liberais que não se incomodaram com a situação e lá foram para a ilha.
Mas acredito num mercado livre suficientemente aberto para permitir intervenção estatal em situações que o justifiquem. E baseio esta crença em observações e analogias, e não na fé.
Posso conceder que o mercado global é um sistema complexo e dinâmico e poderá, teoricamente, ser modelado como o clima da Terra, por exemplo. Posso acreditar que sim, não é uma ideia chocante, tem um grau de probabilidade bastante elevado. Se for verdade, estamos, provavelmente, perante um exemplo de auto-organização. E, se assim for, as suas características impedem-no de cair no caos ou em poços de atracção (ver Kaufman). Mas não é esta uma descrição do corpo humano? Não estamos nós constantemente à beira do caos (as leis da termodinâmica o dizem)? No entanto as nossas células mantêm as suas funções ao longo das nossas vidas, os músculos não se misturam com a pele, a morfologia mantém-se constante e não nos transformamos numa massa informe de átomos. Mas por vezes ficamos doentes. O que fazemos nessa altura? Deixamos o tempo correr e esperamos para ver o que acontece? Não. Tentamos reparar o problema. E se pudéssemos fazer o mesmo com o clima, quem se atreveria a dizer que o deixássemos em paz sabendo que podíamos evitar um dilúvio ou uma seca prolongada (estou a entrar no domínio da ficção científica mas a história já nos ensinou a evitar julgamentos precipitados). Aquilo que eu defendo é que se encarem os modelos económicos como sistemas complexos que, mesmo que tenham mecanismos de auto-organização e auto-regulação, podem ser manipulados sempre que isso possa evitar consequências negativas para o indivíduo.
Escreve Picuinhas, a propósito da sua reacção ao seminário de Holland: ?Esse entusiasmo é temperado por um forte cepticismo quanto à possibilidade de alguma vez se poder fazer alguma previsão certeira e não-trivial baseada em simulações desse tipo de sistemas?. É a velha questão do determinismo. Penso que era Pascal que dizia ?dêem-me as condições iniciais e conto-vos a história do mundo?. A mecânica quântica veio refrear o ímpeto determinista (embora não tenha convencido Einstein, que acreditava que o velho lá de cima não jogo aos dados). Por isso o cepticismo de Picuinhas é perfeitamente natural. Mas o espírito deve estar aberto. Imaginem o cepticismo, há mil anos atrás, em relação a tantas banalidades do nosso quotidiano. Eu tenho feito investigação na área dos sistemas complexos adaptativos (particularmente no âmbito dos Algoritmos Genéticos, criados nos anos 70, por Holland, para estudar estes sistemas). E reconheço o potencial poder da ciência da complexidade. Se vai ser a ciência do séc. XXI, como afirmou Holland em Lisboa, não sei. Mas vai ser muito importante.
"Repare que a posição liberal não é, nem pretende ser, científica.", escreve Picuinhas. Uma questão interessante. Acredito que não seja uma posição científica. Mas não aspirar a sê-lo deixa-me preocupado. Talvez seja a minha racionalidade excessiva a falar. As minhas posições, ideias ou conceitos procuram sempre um fundamento científico. Se tiverem esse carácter, posso sempre provar que estão erradas (mesmo que isso destrua a minha base moral). Nesse aspecto sou seguidor de Karl Popper - é ciência tudo aquilo que pudermos provar, ou tentar provar, que está errado. Parece um contra-senso mas não é. Uma leitura mais atenta do filósofo talvez esclareça algumas coisas que este pequeno espaço não permite.
"A realidade não parece demonstrar a ideia de que um sistema económico ou social cai necessariamente no caos ou em ciclos finitos perpétuos. Aliás, a ideia de que cai necessariamente nesses comportamentos é que me parece uma extrapolação perigosa de resultados científicos, mas teria de ler o livro para o poder afirmar.". Tem toda a razão. Aqui não me expliquei bem e ao reler as minhas próprias palavras percebo o erro. Acima, já referi que aceito que os sistemas económicos possam ser auto-organizados. Mas eu tenho alguma informação sobre o assunto. Aquilo que eu queria perguntar era se os liberais acreditavam nos seus modelos por uma questão de fé ou se estavam suficientemente bem informados sobre os últimos avanços no estudo da complexidade. Porque, nas condições da primeira hipótese, podem estar de acordo com as conclusões que poderiam observar nas condições da segunda hipótese, mas sem as complicações adicionais.
"Pergunta-se se, sendo o comportamento dos sistemas envolvendo agentes humanos essencialmente imprevisível, não será perigoso «deixar esses sistemas correr livremente, correndo o risco de observar desastres, mesmo sabendo que poderiam estabilizar posteriormente?» Responder-lhe-ia que não, que se alguém puder antecipar um desastre deve obviamente fazer tudo ao seu alcance para o evitar.". Parece que concordamos. Mas logo a seguir: "Curiosamente, no entanto, as sociedades mais liberais não parecem particularmente sujeitas a desastres.". Acha que não? Parece que já tivemos alguns exemplos na História recente que nos devem fazer reflectir na exactidão desta afirmação (com isto não quero dizer que os modelos menos liberais não estão sujeitos ao desastre; talvez exista um equilíbrio e a defesa desta ideia é o objectivo principal deste comentário).
"Mas a posição de um liberal é a de que, com o nosso conhecimento individual limitado e com uma capacidade de previsão reduzida, é geralmente melhor deixar as coisas correr do que limitar as liberdades com medo de desastres largamente imaginários.". A posição de um cientista é a de superar a limitação do conhecimento e melhorar as capacidades de previsão (por favor não transformem esta discussão em mais uma batalha da tão actual "guerra das ciências").
Permitam-me agora comentar os comentários. O João Miranda diz que "a economia é um sistema complexo, no sentido em que é irredutível a um modelo simples.". Não se ofenda mas esta frase parece vazia de conteúdo. Teríamos que definir modelo simples, já estamos a definir sistema complexo sobre esse conceito. E isso não foi feito. Além disso, deveria definir-se em relação outro aspecto: o reducionismo. Muitos pensadores não aceitam este principio, logo, para esses, nada se pode reduzir a um modelo simples.
Eu não disse que a economia é um sistema complexo que tem de ser controlado. Apenas disse que, se a economia nos permite intervenções pontuais, porque não fazê-lo? Quanto ao facto de estarmos dentro do sistema e o controlarmos não entendo o problema. Já ouviu falar do conceito de agente (o clip que eu vejo neste momento, no canto superior esquerdo no meu visor, é um agente)?.
Aceito que a economia não seja um sistema criado pelo homem, embora esta questão justificasse uma discussão filosófica mais profunda, que poderia envolver a cultura e a linguistica. Mas os modelos económicos são criados pelo homem. A não ser que tenhamos uma visão radical dos "memes" (entidades definidas pelo biólogo evolucionista Richard Dawkins e que pretendem representar as ideias, fazendo a analogia com "genes"). Nesse caso NENHUMA ideia foi criada pelo homem. Todas tiveram uma origem proto-memética, e propagaram-se pelos cérebros, ao longo da história cultural do homo sapiens, tal como os genes se propagaram no ADN através da história do planeta. Mas nem o mais radical darwinista cultural consegue defender convenientemente esta questão.
Embora o último parágrafo do primeiro comentário de João Miranda esteja pouco compreensível deduzo que queira dizer que as acções de regulação, por serem imprevisíveis, podem causar perturbações indesejáveis. Parece-me incoerente. Se o sistema é sensível a perturbações e, ao mesmo tempo, auto-regulado, é também, segundo posso depreender, imune a perturbações (no sentido em que é estável). Nesse caso, se o homem faz parte do sistema, como é que as suas perturbações ou intervenções serão piores do aqueles que podemos esperar de outras entidades (exteriores ao sistema? Segundo o que entendi do raciocínio exposto, não existem).
No seu segundo comentário João Miranda fala do sistema REGULADORA+ECONOMIA. Gostava de saber se REGULADORA+MODELO ECONÒMICO é a mesma coisa, na sua opinião. Só assim poderei comentar convenientemente.
Noutro comentário podemos ler que "O desejo da liberalização assenta sempre no pressuposto da existência de uma justiça eficaz, imparcial, forte.". Este é uma questão que merece ser amplamente debatida, até porque vivemos em Portugal, e todos sabemos como funciona a nossa sociedade.
João Miranda
A economia é um sistema complexo no sentido em que não pode ser apreendida por uma única mente. Quando falo num sistema simples estou a falar de sistemas com poucos graus de liberdade e que por isso podem ser facilmente compreendidos.
A economia não pode ser apreendida por nenhuma mente ou por nenhum conjunto restrito de mentes. Isto acontece porque, em economia, os mais ínfimos detalhes são importantes. Nunca se sabe, por exemplo, de onde virá a próxima inovação. A economia só pode ser apreendida parcialmente (muito parcialmente) por cada mente individual. Este facto por si só implica que só o controlo descentralizado é eficiente.
Quando se fala em regulação, fala-se em regulação por um órgão central. Fala-se da planificação da economia e da sociedade por parte de um órgão central. O problema deste tipo de regulação está no facto de os reguladores serem tão humanos como os humanos que pretendem regular. No entanto, estes reguladores não possuem nem os meios, nem a capacidade para prever as consequências dos seus actos reguladores.
A vantagem do liberalismo está precisamente no facto de a regulação ser feita de forma descentralizada por quem está mais interessado no desenrolar dos acontecimentos, por quem possui a informação necessária para realizar a regulação e por quem tem a legitimidade para agir.
À luz do liberalismo, o caos não é necessáriamente um problema. Uma sociedade dinâmica terá forçosamente periodos de destruíção criativa. Novos produtos e novas ideias provocam variações abruptas e imprevisíveis em determinadas variáveis do sistema. Os liberais não prometem a estabilidade nem a consideram particularmente desejável.
No entanto, quem acha que a economia é um sistema caótico e que isso não é desejável, não deve ter ilusões. Um sistema caótico com biliões de graus de liberdade não é previsível e por isso não pode ser controlado de forma eficaz por uma autoridade central.
REGULADORA+ECONOMIA e REGULADORA+MODELO ECONÒMICO não são a mesma coisa. Uma economia é um sistema real, físico. Um modelo económico é uma abstracção inventada pelos seres humanos. As economias reais não obedecem aos planos humanos. Emergem das acções humanas. E os humanos tendem a agir contra os seus próprios planos ou contra os planos dos seus dirigentes.
Há também uma diferença entre determinismo ontológico e determinismo epistemológico que é importante. Se o determinismo ontológico for verdadeiro, o estado actual do universo determina univocamente todos os estados futuros. Mas isso não significa que o futuro seja previsível (determinismo epistemológico). A economia é um caso em que o determinismo epistemológico é impossível pelo simples facto que é impossível saber a cada momento qual é o estado actual da economia (que é um sistema vasto em que todos os detalhes são relevante). E mesmo que fosse possível determinar o estado actual da economia, continuaria a ser impossível calcular o efeito dos actos de regulação no seu estado futuro porque não existem meios computacionais suficientemente poderosos. Mas mesmo que tudo isso fosse possível, o próprio acto de previsão tenderia a modificar o comportamento dos agentes económicos tornando a previsão inútil.
Por outro lado, se a eonomia for um sistema caótico, então o determinismo epistemológico é impossível porque os sistemas caóticos são sensíveis às condições inciais. Não bastaria conhecer as condições inciais. Seria necessário conhecer as condições iniciais com uma precisão infinita.
O estudo de sistemas complexos que tem merecido a atenção dos investigadores nos últimos 30 anos tem entre os seus precursores Friedrich Hayek, que já nos anos 20 se dedicava a estes problemas. A ideia base do trabalho de Hayek é a de que um sistema complexo como a economia não pode ser controlado por uma autoridade central porque a informação necessária para que o controlo seja eficiente está dispersa por todo o sistema e nunca está todo acessível a uma única pessoa.
Um bom livro para se entender as ideias de Hayek sobre a economia como um sistema complexo é "The Constitution of Liberty" onde é explicada a noção de Cataláxia.
Carlos Miguel Fernandes
O Sr. João Miranda tem uma ideia muito vaga, e por vezes errónea, das teorias da complexidade, do caos e da evolução, embora seja de louvar o seu interesse por essas questões (desde que não ponha metade da informação de parte para poder justificar a sua ideologia). Parece confundir sistemas complexos com sistemas caóticos e algumas das suas afirmações têm graves problemas de precisão (mesmo tendo em conta o espaço que utilizamos; eu próprio cometi um grave erro no comentário que originou esta discussão, e que ainda agora, ao fim de várias intervenções, tem os seus efeitos).
Por exemplo, João Miranda escreve que ?Não bastaria conhecer as condições iniciais. Seria necessário conhecer as condições iniciais com uma precisão infinita.?. Esta frase não faz sentido. Eu não sei a diferença entre conhecer as condições iniciais e conhecê-las com precisão infinita. Aliás, nem sei o que é conhecer com precisão infinita.
Mas como não posso escrever aqui um tratado sobre complexidade (nem conseguia) sugiro a leitura de um pertinente artigo: Is Hayek's Social Theory an Example of Complexity Theory?
Assim, podemos estudar a teoria da complexidade e a ideias de Friederich Hayek, que parece ser o guru ideológico de alguns liberais. O artigo não pretende diminuir o trabalho de Hayek, antes pelo contrário. Mas pretende enquadrá-lo numa perspectiva moderna, e de cariz científico, da teoria da complexidade. Um comportamento que me deixa perplexo é o apego que algumas pessoas têm aos pensadores que produziram textos e teorias que corroboram as suas crenças políticas, sociais ou morais. Uma vez descoberto o mestre, parece que tudo o que o engenho humano produziu antes e, especialmente, depois desses trabalhos não tem valor suficiente para, pelo menos, uma pequena vista de olhos (será que o João Miranda esteve no seminário de John Holland?...o autor deste blog (Picuinhas) teve interesse e curiosidade suficiente para lá ir).
Outro comportamento habitual é a leitura transversal de algumas obras. O exemplo do darwinismo é esclarecedor. Quantas teorias sociais e políticas foram forjados sobre uma interpretação abusiva do autor da "Origem das Espécies"? Algumas: eugenia, racismo, darwinismo social. Muitas expressões anglo-saxónicas foram criadas baseando-se nas cruéis relações inter-espécies do mundo animal. Para aqueles que gostam de as aplicar na descrição de relações humanas, aconselho um pequeno trecho do livro Moby Dick, de Herman Melville, que ficou conhecido como "Sermão aos Tubarões". Leiam o livro e encontrá-lo-ão.
Uma das falácias do (algum) discurso liberal, também baseada no darwinismo e fortemente influenciada pelo trabalho de Hayek, é a ideia de que a procura do que é melhor para nós conduz à optimização do conjunto (sociedade). Afirmá-lo é recusar décadas de investigação científica; é ignorar Von Neumman, a teoria dos jogos ou o dilema do prisioneiro; é esquecer os avanço na matemática e na teoria dos conjuntos; é recusar o equilíbrio de Nash. Felizmente, alguma teoria económica (mesmo liberal) vem sendo desenvolvida de acordo com estes novos paradigmas.
Sugiro uma reflexão sobre a última frase do artigo que referi.
João Miranda
O Carlos cria um Homem de Palha para melhor me atacar. Não adianta porque eu não defendo os argumentos que ele ataca.
Só para dar um exemplo, não se pode concluir dos trabalhos de Hayek que "a procura do que é melhor para nós conduz à optimização do conjunto (sociedade)."
Conclui-se outra coisa mais importante: o conceito de optimização global da sociedade não faz sentido porque pressupõe valores absolutos. Hayek defende , e bem, que em economia todos os valores são subjectivos e incomensuráveis.
O argumento segundo o qual "a procura do que é melhor para nós conduz à optimização do conjunto (sociedade)" é um argumento secundário porque pressupõe valores comuns. Se admitirmos esse pressuposto, o que numa discussão com um socialista pode ser útil, o argumento é sólido na maior parte das situações.
Os liberais conhecem muito bem a teoria dos jogos e o dilema do prisioneiro. E por isso mesmo é que são contra a propriedade colectiva e contra o controlo político da actividade económica. O estado é uma entidade demasiado vulnerável à tragédia dos comuns.
Quanto ao resto, o Carlos não respondeu aos meus dois argumentos fundamentais:
- como é que um controlador pode controlar uma economia sem aceder à informação dispersa por toda a sociedade?
- como é que se controla um sistema caótico com biliões de graus de liberdade?
Carlos Miguel Fernandes
Não pretendo atacá-lo (estou a ser sincero). Mas não podia deixar passar certas imprecisões, especialmente porque servem de base a outras conclusões.
Um exemplo do seu último comentário: Pergunta-me "como é que se controla um sistema caótico com biliões de graus de liberdade?". Afinal, a economia é um sistema complexo ou caótico? Na abordagem moderna da complexidade existe diferenciação entre os dois termos. E fala de sistema caótico com biliões (onde foi buscar este valor?) de graus de liberdade. Isso significa que existem sistemas caóticos com poucos graus de liberdade? Ou então está a distinguir daqueles que têm apenas milhões de graus? Podem parecer questões secundárias garanto-lhe mas não são. Devemos comunicar com precisão.
A primeira questão que põe pode ser abordada de duas formas:
Eu posso controlar o nível de um depósito de um líquido sem saber a densidade do mesmo, nem a sua cor ou cheiro.
Mas a questão nem sequer é essa. O que pretende a teoria da complexidade (pelo menos no estado em que se encontra a investigação teórica e o potencial tecnológico) não é um controlo preciso baseado em toda as variáveis do sistema. O que se procura é o padrão que, segundo se acredita e a observação tem confirmado, todos os sistemas complexos apresentam (ao contrário dos sistemas caóticos que, aparentemente, não revelam padrões de comportamento). Se, com a compreensão do padrão, conseguirmos prever comportamentos, mesmo que qualitativos, porque será que não podemos intervir, partindo do princípio que a nossa intervenção faz parte do sistema logo, o padrão que conhecemos incorpora a intervenção.
Eu nunca disse que devemos ou podemos controlar cientificamente a economia. Mas, tal como há séculos atrás, começámos a prever, com muita exactidão, o movimento dos planetas, será que um dia não seremos capazes de prever (com alguma precisão, não quero quantificar) o comportamento de um sistema complexo (ou mesmo de um sistema caótico, mas isso levaria a uma reformulação da teoria). Diga-me uma coisa: se, com a ajuda das leis de Newton, fosse prevista uma colisão de um cometa com a Terra, daqui a cem anos, devíamos esperar o evento sem nada fazer. É que o universo seguirá o seu curso normal. Não é por a humanidade desaparecer que estamos perante um comportamento caótico, pois não? Para quê intervir, então?
Não é de um controlo exterior, por parte de alguma entidade poderoso, que eu falo. Nós fazemos parte do sistema. Se conseguirmos prever o resultado das nossas acções, podemos 'controlar' o sistema, mesmo sendo parte integrante do mesmo.
Ainda há alguns pontos do seu último comentário que gostaria de abordar, mas voltarei mais tarde.
[...]
João Miranda
Um sistema complexo é um sistema que está para alem das capacidades cognitivas de qualquer ser humano ou de qualquer análise matemática e mesmo dos meios computacionais mais vulgares.
Algumas das características dos sistemas complexos são as seguintes:
- as partes encontram-se dispersas no espaço e no tempo;
- o número de graus de liberdade é elevado;
- as relações entre as partes são não lineares;
- a informação leva tempo a propagar-se pelo sistema e é modificada;
- formam-se estruturas a várias escalas;
- o sistema é aberto e as fronteiras não são claras;
- fenómenos simples nas microescalas produzem auto-organização nas macroescalas;
- nenhuma parte pode conter o todo, caso contrário o sistema passava a ser um sistema simples;
- Segue-se que nenhuma parte pode controlar o todo.
O número de graus de liberdade de um sistema é igual ao número de condições inciais, ao número de variáveis e igual ao número de equações que descrevem o sistema. Uma economia é um sistema complexo, tendo um elevado número de graus de liberdade, porque o número de variáveis é extremamente grande. Basta pensar que uma economia depende de cada uma das pessoas que a constitui, dos meios disponíveis e das restrições ambientais.
Um sistema complexo como a economia pode ter ilhas de caos. Isto é, algumas variáveis que por períodos mais ou menos longos se comportam de forma imprevisível para um observador local. Ou então zonas em que os padrões macroscópicos se desfazem. No entanto, falta provar que o caos é necessariamente mau. Pode haver aqui uma ilusão colectivista que leva algumas pessoas a defender que determinados padrões macroscópicos são mais importantes que a liberdade microscópica dos agentes.
Caos não deve ser confundido com o significado habitual da palavra caos. O choque de um cometa com a Terra não é certamente um fenómeno caótico, principalmente se esse acontecimento puder ser previsto com 100 anos de antecedência. Os acontecimentos caóticos são, por definição, imprevisíveis.
Não é possível controlar a economia da mesma forma que se controla um tanque por três razões fundamentais:
- Em economia não existe uma única função objectivo a optimizar. Existem biliões e cada pessoa tem a sua. Não existem valores absolutos. Os valores são subjectivos e incomensuráveis.
- Mesmo que existisse uma função objectivo, o controlador não saberia como agir porque não dispõe da informação dispersa por todo o sistema nem pode prever as consequências dos actos de regulação. Enquanto num tanque, existem duas ou três variáveis com efeitos previsíveis, numa economia existem bilhões com efeitos imprevisíveis.
- O controlo tem que ser feito em tempo útil e os agentes económicos reagem às medidas de controlo. Como a informação se propaga lentamente numa sociedade e como essa informação é modificada, as acções de controlo tendem a ser absorvidas sem provocarem qualquer efeito.
Só para dar um exemplo, as formigas de um formigueiro geram uma paisagem ordenada que se distingue perfeitamente da paisagem onde não existem formigas. Mas nada na visão de um formigueiro nos garante que nenhuma formiga foi sacrificada para se conseguir aquele resultado. Uma sociedade injusta pode, mesmo assim, gerar padrões extremamente interessantes.
Carlos Miguel Fernandes
Não tenho tempo agora para lhe responder convenientemente, mas não posso deixar passar em claro o seu comentário sobre o cometa. Eu nunca escrevi que o choque do cometa é um acontecimento caótico. Por favor, releia as minhas palavras. Vai ver que não estou a fazer confusão nenhuma com os termos. Tenho alguma confiança de que o (muito) tempo que gasto a estudar complexidade, auto-organização e sistemas adaptativos me permite ter uma abordagem correcta do conceito de caos. Mas este pequeno pormenor faz-me recear que esteja a ser mal compreendido. Não sei se a culpa é do emissor ou do receptor mas vou tentar fazer um esforço para ser mais claro.
João Miranda
De facto, o meu comentário não está correcto. O essencial do que eu quis dizer foi que "caótico" não é sinónimo de "indesejável".
Quanto ao facto de existirem perigos previsíveis que podem ser evitados, os liberais não defendem que devemos ficar de braços cruzados. O que os liberais defendem é que a melhor forma de lidar com qualquer perigo é através de um sistema em que as decisões são tomadas de forma descentralizada.
Carlos Miguel Fernandes
Mas 'caótico' deve ser sinónimo de 'indesejável', pelo menos no sentido correcto do termo. O que o João Miranda está referir não é caos mas perturbações que levam o sistema, temporariamente, a dimunir a sua aptidão. Mas, a médio prazo, a perturbação pode levá-lo a óptimos que ainda não tenham sido descobertos. Se for isto o que quer dizer penso que tem razão.
Não é um controlo central que eu defendo, mas na verdade não consigo descobrir qual será a melhor forma de dimensionar os vários centros de decisão. Porque a questão importante é esta: a dimensão dos centros de decisão. Com um grande centro de decisão, em que todos os indivíduos trabalham para o bem do conjunto, temos um sistema em regime estático (Kauffmam até lhe chama regime Estalinista). Mas um sistema em que cada indivíduo age no seu próprio benefício está em constante mutação (e, entre os altos e baixos, e sua aptidão média não é melhor do que a de um sistema estático). É o que se chama, na teoria da complexidade moderna, um sitema caótico. Os sistemas complexos situam-se entre estes dois extremos (estas conclusões foram baseadas em experimentacão). A dificuldade consiste em perceber qual a dimensão correcta das entidades (conjuntos de indivíduos, retalhos (patches), centros de decisão, podemos chamar-lhes muita coisa) para que a evolução (prefiro adapatação) se encontre no limiar do caos. É este o conceito da auto-organização. Por algum mecanismo que ainda não foi entendido, todo o sistema complexo evolui (evolves) no limiar do caos. Então, quando falamos de economia, falamos de um sistema cujo comportamento pode cair em três estados: caótico, complexo ou estático (ordered regime, ainda não encontrei um boa tradução para este estado). O modelo económico que escolhemos (aqui já estou a especular) deve estar mais preocupado com a dimensão dos 'centros de decisão' (não sei se é a melhor expressão, estou a tentar seguir o raciocínio de João Miranda) do que em centralizar ou não centralizar. Mas qualquer que seja o ponto de vista, vais haver sempre uma espécie de centralização. Ou será que, tal como na democracia, conseguiremos dividir esse centro em retalhos (depois aparece o problema da divisão dos retalhos em sub-retalhos, mas é inevitável num sistema).
Picuinhas
Não tenho tempo agora para dar a minha opinião sobre todos estes comentários. Mas chamou-me a atenção a ideia de que há um "óptimo" para uma sociedade, que pode ser descoberto ou aproximado melhor de uma forma distribuída (ou descentralizada). O que é o óptimo de uma sociedade? Quem o define? O governo? Um conjunto de iluminados? Cientistas? É decidido democraticamente? Afinal, quem toma as decisões democráticas são os mesmos agentes de que depende o comportamento do sistema. Esses agentes são seres humanos, e são os mesmos que teorizam acerca do próprio sistema e que, ao fazê-lo, lhe alteram o comportamento de forma que não podem prever. Quanto ao caos, eu diria que as nossas sociedades estão bem longe de estar nesse regime. Estão, isso sim, bem mais próximas do "ordered regime".
Por outro lado, quanto mais ouço falar da investigação em sistemas complexos, mais o assunto me fascina. É perfeitamente legítimo, e interessante, tentar tirar conclusões qualitativas (ou mesmo quantitativas) acerca do comportamento das nossas sociedades, através da simulação de sistemas complexos. Mas seria uma enorme arrogância considerar que os modelos são tão bons que essas conclusões devam moldar as nossas políticas. Espero sinceramente que isso não aconteça. Para políticas de base "científica" já basta o marxismo.
João Miranda
Alguns comentários:
- O que é ou não desejável é um problema ético cuja solução depende de valores. Os valores são subjectivos. Que sistema de valores é que o Carlos adopta para dizer que o caos é indesejável? Esse sistema de valores é comum a todos os seres humanos?
- O Carlos diz que "um sistema em que cada indivíduo age no seu próprio benefício está em constante mutação (e, entre os altos e baixos, e sua aptidão média não é melhor do que a de um sistema estático)". Curiosamente, há estudos que mostram precisamente o contrário (Ver "The evolution of cooperation" de Robert Axelrod). O interesse próprio não é incompatível com a cooperação nem com a estabilidade. Essa, aliás, é uma ideia liberal antiga. É do interesse próprio de cada um que emergem as instituições humanas. E estas instituições tendem a produzir resultados melhores para todos.
- O liberalismo não proíbe a cooperação entre individuos. Proíbe apenas a formação de associações não voluntárias. Na prática, os seres humanos tendem a associar-se uns aos outros de forma voluntária.
- As associações voluntárias e as trocas voluntárias permitem a coordenação de esforços entre pessoas com valores diferentes. As sociedades liberais não são colecções de indivduos desgarrados uns dos outros.
- Numa sociedade liberal, tendem a emergir espontaneamente centros de decisão consentidos por todos os individuos e a dimensão destes centros de decisão tende a adaptar-se às circunstâncias e às necessidades. Uma sociedade liberal não é uma sem centros de decisão. É uma sciedade em que todos os centros de decisão respeitam a regra da não iniciação da força.
- A escolha das dimensões dos centros de decisão é ela própria uma decisão. Que centro de decisão é que toma esta decisão e que dimensão tem? Catch 22.
- O tamanho óptimo dos centros de decisão é em si mesmo um problema económico cuja solução tem que ser determinado. Mas a informação necessária para determinar essa dimensão não é acessível a ninguém. Lamento, mas o problema da dispersão de informação é inultrapassável.
- Um liberal Hayekiano dirá sempre que o tamanho óptimo dos centros de decisão só poderá ser determinado pelo próprio sistema e nunca por um cientista iluminado. Para os liberais Hayekianos, a economia é melhor (mais rápido, mais preciso) simulador da economia. Esta é uma característica de qualquer sistema complexo. Um sistema complexo é sempre o melhor simulador de si próprio.
- Uma sociedade liberal funciona como um algorítmo genético. A liberdade dos agentes se associarem permite que diferentes dimensões dos centros de decisão sejam testadas. Os centros de decisão que melhor sobrevivem ao teste do tempo são aquelas que melhor servem as preferências dos seus membros. Têm a dimensão adequada aos valores dos seus membros.
Gostei da da simulação. Não há dúvida: a melhor forma de prever o futuro é esperar que aconteça.
Carlos Miguel Fernandes
Ao Picuinhas:
Também não acredito que possamos definir o óptimo (global) de uma sociedade (existem mesmo classes de problemas ? reais e teóricos ? onde não é possível conhecer previamente o óptimo global). Mas, considerando o bem estar dos indivíduos, podemos dizer alguma coisa quanto ao estado dessa sociedade. Além disso, os óptimos talvez estejam em constante mudança. Não é uma paisagem de aptidão (fitness landscape) imutável. Aquilo que eu tentei dizer foi o seguinte: um sistema a evoluir no limiar do caos tem mais possibilidades de saltar para óptimos locais mais elevados. É a mesma coisa que acontece quando subimos a uma colina e verificamos que, ao lado, existem outras mais elevadas. Para conseguir atingir o seu topo, é necessário sair do local onde nos encontramos. E para que isso acontece temos que descer. Num regime estático (marxista ou estalinista) isso não é possível. Uma vez encontrado um ponto aparentemente estável não se vai para mais lado nenhum. Como costuma dizer um amigo meu, o marxismo do leste europeu era muito bonito mas, mesmo que não tivesse mais problemas, havia um problema incontornável: o nivelamento por baixo. Basta comparar os países que faziam parte do pacto de Varsóvia com a antiga Jugoslávia que, apesar de se considerar como um país socialista, adoptou um regime de mercado livre. Mas um regime caótico também não me parece desejável (dêem-me exemplos de sistemas que se desejem caóticos, mas considerando uma abordagem moderna da teoria da complexidade). A oscilação e instabilidade inerentes obrigariam a uma mudança muito rápida de aptidões, sem que as que fossem entretanto adquiridas pudessem ser convenientemente exploradas.
É verdade que os seres humanos fazem parte do sistema. Se não fizessem e se as suas acções não produzissem efeitos de quantificação difícil, talvez não fosse um sistema complexo, não é?
Fazendo a analogia com a teoria da auto-organização não me parece que a nossa sociedade esteja no ?caos? nem no ?ordered regime?, embora alguns sub-sistemas possam apresentar essas características. Se, como se acredita, a economia mundial é um sistema complexo, tenderá sempre para um regime ?no limiar do caos? (o no limiar do ?ordered regime?, é a mesma coisa).
Mais importante do que moldar as nossas políticas é tentar compreender as conseqüências das mesmas. Nem que seja para satisfazer a natural curiosidade humana.
Respondei a João Miranda noutra altura, até porque ele colocou muitas questões e observações pertinentes.
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Agora, com mais tempo, vou tentar comentar as últimas observações de João Miranda. Mas antes devo dizer que, embora amenizado nos último comentários, o tom do seu discurso continua a não ser o mais adequado. Penso que está convencido que eu tento arranjar provas irrefutáveis ou justificações científicas para as minhas crenças. Mas não é verdade. Só quero levar as pessoas a pensar um pouco nos fenómenos que as rodeiam e no seu próprio sistema de crenças. Não pretendo dar respostas, apenas fazer perguntas. Tento ainda descrever algumas ferramentas que conheço e que podem (ou não) ajudar no processo. Tenho uma abordagem das questões que se baseiam no método científico, é verdade. Evito estabelecer bases morais ou ideológicas. Uma das forças da ciência está na forma como tenta encontrar os pés de barro dos seus ídolos para melhor os destruir, não tentando escondê-los para mais facilmente erigir outros edifícios, com fundações do mesmo material (embora exista, mesmo dentro da ciência, tendência para o fazer; talvez seja humano, ninguém gosta de ver as bases de uma vida inteira de investigação cair à sua frente). Se Einstein não tivesse questionado a universalidade das leis de Newton, não teria desenvolvido a teoria da relatividade. E se o físico português João Magueijo adoptasse uma postura de crença, nunca teria questionado Einstein e a constância temporal da velocidade da luz (independentemente de estar correcto, ainda é cedo para o dizer). Esta autofagia da ciência é a idiossincrasia que lhe permite estar em constante mudança e permanentemente viva.
Vamos aos comentários dos comentários:
- O sistema de valores que defende que ?o caos é indesejável? é comum a todos os humanos? Poderá ser ou não. Será que é desejável que as células do nosso corpo comecem a mutar constantemente? Daria ao cancro uma nova dimensão. Talvez exista alguma lei física que impeça os sistemas complexos de caírem no caos (note-se que, segundo a teoria moderna, o clima não é necessariamente um sistema caótico, mas aparenta as características de um sistema complexo). Não nos esqueçamos que um sistema caótico apresenta comportamento aleatório. Acredita-se que a aleatoriedade pode não existir na natureza. Assim, talvez nem sequer existam sistema caóticos. Aqueles que, hoje, consideramos caóticos, seriam aqueles que ainda não foi possível estabelecer, ou descobrir, o padrão de auto-organização. Mas já estou a especular e a divagar...
- Existem estudos que afirmam o contrário do que eu digo? Acredito que sim. Não conheço o livro que refere. Mas é de 1984. E não sei se o autor recorreu a experiências ou apenas a argumentos para defender a sua tese. Stuart Kaufman tem livros de 94 e 96. A ?Ordem Oculta? de Holland é de 96 e o livro ?Emergence: From Chaos to Order?, do mesmo autor, é de 97. Não estou a invalidar o trabalho de Axelrod (quero apenas salientar que existem resultados mais frescos). Posso até dizer-lhe que acrescentei o título que referiu a uma lista de aquisições a curto prazo.
- Nada a acrescentar...
- Nada a acrescentar...
- Não me choca este comentário...
- Um problema que já referi. Não tenho a ambição de apresentar uma solução, nem sequer de defender que ela existe.
- Esta é a questão mais complexa, mesmo a nível filosófico. Não queria acrescentar muito, até porque não reflecti convenientemente, mas receio que estejamos a cometer cair no erro do antropocentrismo.
- Nem eu disse que algum ?cientista iluminado? deveria dimensionar os centros de decisão. Mas se conseguirmos entender as consequências das várias dimensões não evoluiremos na escala do conhecimento humano? Conhecer não implica interferir. E não se trata de prever o futuro. Todos nós conhecemos o grau de confiança das previsões meteorológicas, mas qualquer ser pensante é capaz de dizer que em Agosto, em Lisboa, é pouco provável que as temperaturas desçam até valores negativos.
- Posso dizer-lhe que uma sociedade marxista também funciona como um algoritmo genético (AG). "Mal" dimensionado, é certo, mas funciona como um sistema desse tipo. Grande parte do esforço de investigação teórica sobre AGs centra-se no problema da convergência prematura. Um AG mal dimensionado pode encontrar facilmente um óptimo local de baixa aptidão. Mas um AG mal dimensionado também pode deambular caoticamente pelo espaço de procura, tornando a descoberta de uma boa solução um acto de pura sorte. Talvez seja o seu dimensionamento no limiar do caos que maximiza o desempenho de um AG. Na minha dissertação de mestrado cheguei a conclusões semelhantes, embora não fosse o objectivo principal da tese. Posso facultar-lhe o acesso ao texto, se estiver interessado.
Deixo-vos com um parágrafo de John Holland que encontrei no livro ?A Ideia Perigosa de Darwin?, do filósofo norte-americano Daniel Dennet. Não é uma obra que trate directamente do assunto que estamos a discutir, mas pode ser que até nos forneça algumas pistas. Por isso, e pela excelência do livro, aconselho a sua leitura (editora Temas e Debates).
Este parágrafo encontra-se num capítulo que questiona abordagem de Noam Chomsky ao problema da linguagem humana:
Um modelo interno permite que um sistema olhe em frente para as futuras consequências das acções presentes, sem na realidade se vincular a essas acções. Em particular, o sistema pode evitar actos que o colocariam irreversivelmente na trajectória de algum desastre futuro ("saltar um penhasco"). Menos dramaticamente, mas igualmente importante, o modelo permite ao agente efectuar lances posteriores obviamente vantajosos. A própria essência da vantagem competitiva, quer seja no xadrez ou na economia, é a descoberta e a execução de lances de montagem de palco..........
Esqueci-me da referência da citação. Vi-a no livro de Dennet mas originalmente vem de: Holland, John, 1992. "Complex Adaptive Systems" Daedalus, Inverno, pág. 25. [Nota: Não consegui encontrar o livro na Amazon.]
2003-12-05
2003-12-04
"Sampaio em Argel"
O que eu queria ter dito sobre as declarações de Jorge Sampaio em Argel (Diário de Notícias, Público e Jornal de Notícias) disse-o José Manuel Fernandes no editorial de hoje do Público.
2003-12-02
A infâmia
Segundo um gráfico publicado no Público, o número de colonos israelitas nos territórios ocupados tem vindo a crescer aritmeticamente desde há 20 anos. De 21 700 em 1980, passou-se para 231 443 em 2003. O crescimento nunca parou, ao longo de 20 anos. É vergonhoso. Não justifica nenhum tipo de terrorismo, bem entendido, mas retira toda a razão a Israel, tal como o traçado do muro bem por fora das fronteiras de 1967. Só há uma solução política: desmantelar o muro (ou reconstruí-lo nas fronteiras de 1967) e retirar todos os colonos. Ou, pelo menos, compensar todo o território integrado em Israel com território equivalente integrado na Palestina. Esta é, também, a única solução moral, não andando longe do que propõe o Plano de Paz de Geneva, uma iniciativa a apoiar.
Madredeus, 28 de Novembro
O tempo passa, os Madredeus tocam, e eu ouço. Os Madredeus são uma rocha. Uma referência imutável. Uma garantia no meio da confusão da vida. Ouço-os esporadicamente em concerto. Dentro de uns anos ouvi-los-ei de novo. Estarão, como sempre, iguais. A igualdade na perfeição é uma virtude.
2003-11-26
O discurso da Ordem dos Arquitectos
Helena Roseta escreve hoje no Público sobre a arquitectura em Portugal. Vejamos alguns extractos:
Um pouco antes, Helena Roseta tinha-se referido ao Decreto 73/73, já aqui discutido:
Mais à frente, a arquitecta fala de "liberdade de expressão" (as aspas são propositadas):
O artigo termina com um apelo pleno de bandeiras da esquerda. Em nome de um suposto interesse público de que os arquitectos se sentem naturais porta-vozes, pretende-se pela força da lei aumentar a liberdade positiva de alguns, mesmo à custa das liberdades negativas de quase todos.
Em 1948, um grupo de jovens arquitectos revoltou-se contra a imposição pelo regime salazarista de um estilo "nacional". E partiram, sob o impulso de Keil do Amaral, à descoberta da arquitectura popular, procurando um saber antigo e essencial, onde as formas habitadas nascem da relação entre o homem e o meio.Ou seja, existe, ou existia em 1948, uma arquitectura feita por não-arquitectos, onde os arquitectos beberam um "saber antigo e essencial", e onde "as formas habitadas nascem da relação entre o homem e o meio". O resultado do estudo dessa arquitectura popular foram dois magníficos volumes, publicados pela primeira vez em 1961 pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos, reeditados em 1988 pela Associação dos Arquitectos Portugueses, e reeditados de novo em Maio deste ano pela Ordem dos Arquitectos.
Um pouco antes, Helena Roseta tinha-se referido ao Decreto 73/73, já aqui discutido:
A esta explosão demográfica não correspondeu nenhuma alteração das políticas legislativas com impacto na arquitectura. A qualificação profissional exigível aos autores de projectos não foi alterada, apesar do êxito da petição entregue na Assembleia para revogar o velho decreto 73/73, que permite a não licenciados em arquitectura fazer projectos.Mas, não será evidente que a revogação do Decreto 73/73 irá proibir por lei a arquitectura popular? Argumentarão, claro, que a arquitectura de não-arquitectos não tem, hoje em dia, qualquer valor. Que é má. Que destrói a paisagem. Que as nossas casas de emigrante são a ausência de arquitectura. Mas, se assim é, porque é que as construções vernáculas até 1948 tinham todas as qualidades apontadas? Porque gostamos tanto, hoje, de as recuperar, de lhes aumentar o conforto tentando sempre preservar-lhes o carácter? Será que a construção vernácula contemporânea é mesmo desprovida de carácter, ou é a nossa arrogância cultural que nos proíbe de o encontrar? E não será essa arrogância inversamente proporcional à antiguidade da construção ou, ainda pior, ultrapassável apenas quando já não há memória de quem construiu?
Mais à frente, a arquitecta fala de "liberdade de expressão" (as aspas são propositadas):
Hoje, diz Teotónio Pereira, a liberdade de expressão arquitectónica não está ameaçada pela ditadura política mas pela ditadura do mercado. O que se vende, diz ele, é uma arquitectura medíocre, que não pode deixar de afectar a qualidade de todo o tecido urbano.O "mercado" a que Helena Roseta se refere é, na realidade, apenas um dos lados do mercado da arquitectura, i.e., os clientes. A "ditadura" é o facto de os clientes pretenderem, naturalmente, que se construa aquilo de que gostam, e que considera (e considero) medíocre. Essa suposta "ditadura" é um perigo para a "liberdade de expressão". Não para a verdadeira liberdade de expressão, que felizmente está de boa saúde, mas sim para a possibilidade dos arquitectos projectarem independentemente das opiniões dos seus clientes.
[...]
É o momento de os arquitectos se voltarem a mobilizar, como fizeram em 1948, pela liberdade de expressão e pelo interesse público. Acrescentando-lhe, em pleno século XXI, as novas formas de defesa da cidadania, de que essa liberdade é condição imprescindível e que o interesse público exige.
O artigo termina com um apelo pleno de bandeiras da esquerda. Em nome de um suposto interesse público de que os arquitectos se sentem naturais porta-vozes, pretende-se pela força da lei aumentar a liberdade positiva de alguns, mesmo à custa das liberdades negativas de quase todos.
2003-11-24
A esquerda contra as Ordens
Daniel Oliveira tem razão: "As ordens servem para isto mesmo: defender quem já está contra quem pode chegar."
De novo o "Direito à Arquitectura"
Resposta a Lourenço Ataíde Cordeiro, de O PROJECTO, a quem agradeço a disponibilidade para participar neste debate:
1. Nas páginas da Ordem dos Arquitectos, mais especificamente nos seus estatutos, encontrei uma lista dos "actos próprios da profissão de arquitecto". Esses actos "consubstanciam-se em estudos, projectos, planos e actividades de consultadoria, gestão e direcção de obras, planificação, coordenação e avaliação, reportadas ao domínio da arquitectura, o qual abrange a edificação, o urbanismo, a concepção e desenho do quadro espacial da vida da população, visando a integração harmoniosa das actividades humanas no território, a valorização do património construído e do ambiente". Para o dicionário Texto Editora, o termo "arquitecto" vem "do Lat. architectu < Gr. árchi, principal + tékton, carpinteiro, pedreiro" e significa "o que faz a planta e dirige a construção de edifícios". A definição de arquitectura é muito simples, ainda segundo o mesmo dicionário, correspondendo à "arte de edificar ou de projectar e traçar planos", e não difere muito da definição feita pela própria Ordem dos Arquitectos, embora esta seja um pouco mais abrangente. O problema que levantei originalmente não está, por isso, na definição de arquitecto. Está no facto de a Ordem dos Arquitectos pretender que "só os arquitectos inscritos na Ordem podem [...] praticar" arquitectura. Os membros da Ordem dos Arquitectos pretendem uma definição mais estrita de arquitecto. Pretendem que "arquitecto" signifique "membro da Ordem dos Arquitectos", excluindo de tal definição todos os outros, pratiquem ou não arquitectura. Os membros da Ordem dos Arquitectos querem ter o exclusivo da prática da arquitectura.
É contra esta exclusividade que me insurjo. Que a Ordem dos Arquitectos pretenda atribuir títulos de acordo com critérios que são os seus, parece-me bem. Parece-me mal, isso sim, que o faça com o beneplácito do estado, que lhe confere o exclusivo direito de o fazer e de decidir quem pode "fazer a planta e dirigir a construção de edifícios". Dir-se-á que, nesse caso, eu sou contra as Ordens em geral. É parcialmente verdade. Nada teria contra as ordens se não fossem ordens, se fossem simples associações a que cada um era livre de se associar ou não. Essas associações poderiam ter papeis importantes, sobretudo se agissem concorrencialmente, i.e., se existissem várias para cada profissão.
É interessante reparar que a definição estrita de arquitectura, i.e., aquilo que os arquitectos fazem, não é usada pelos próprios arquitectos. É interessante ler, por exemplo, o que diz Pedro Jordão no seu Epiderme acerca do Muro de Berlim:
Na Primavera de 1980 esteve em Portugal uma exposição itinerante do Centro de Criação Industrial do Centro Georges Pompidou. A exposição intitulava-se "Arquitectura de Engenheiros: Séculos XIX e XX". Desde a minha passagem pelo primeiro ano de Arquitectura que guardo o catálogo dessa exposição, onde se pode encontrar o seguinte extracto:
2. Quem será capaz de cumprir o que a nossa Constituição preconiza, i.e., construir "uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar"? Apenas arquitectos? Reitero que não. Que pura e simplesmente não é verdade. Que há muita gente que, não sendo membro da Ordem dos Arquitectos, é perfeitamente capaz de o fazer. É evidente que o requisito da Constituição, que diz respeito ao direito à habitação, é mínimo, podendo esses requisitos ser cumpridos por habitações com características e qualidades arquitectónicas totalmente diferentes. Mas uma Constituição deve ser mínima, restringindo-se àquilo que é essencial (e todos sabemos que a nossa Constituição não peca por defeito). Finalmente, se a Ordem dos Arquitectos julga que apenas um seu membro é capaz de projectar uma habitação nas condições indicadas, cabe-lhe o ónus de o provar.
3. Neste ponto, pelos vistos, estamos de acordo. Mas se assim é, se "o ordenamento do território e a criação de parques e reservas não são tarefas exclusivas do arquitecto, sendo que os engenheiros, os paisagistas, os economistas, os geógrafos, os sociólogos, entre outros, têm responsabilidades nesse campo", porque é que, na petição promovida pela Ordem dos Arquitectos, o "direito à arquitectura", entendido como o direito da Ordem restringir a prática da arquitectura aos seus membros, surge como "decorrência lógica" do direito ao "ambiente e qualidade de vida"?
4. Será que, como Lourenço Ataíde Cordeiro afirma, muitos "não contratam arquitectos porque não querem e porque são [..] livres" e "por isso põem no mercado edifícios de habitação precários, sem qualidade arquitectónica, mal implantados urbanisticamente, que são autênticas agressões para o ambiente"? Se os edifícios são precários, e são vendidos como bons, o assunto deve ser resolvido na justiça. Se se argumentar que a justiça não funciona, que provavelmente não punirá os responsáveis, concordarei, mas direi também que, nesse caso, do que precisamos é de reformar a justiça, e não de resolver o problema "de cernelha", restringindo liberdades individuais no processo. Quanto à má qualidade arquitectónica, é verdade para a grande maioria dos edifícios construídos em Portugal, infelizmente. Quando à implantação urbanística, também pode acontecer, embora aqui a responsabilidade seja partilhada com urbanistas e municípios. Quanto a serem agressões para o ambiente, tenho muitas dúvidas, sobretudo se por isso se entende "ambiente natural". Mas a questão importante a responder aqui é a de saber se esses potenciais problemas justificam as restrições à liberdade individual que o "direito à arquitectura" preconiza. Na minha opinião a resposta é não.
5. É verdade que concordo globalmente com as citações da Resolução do Conselho da União Europeia feitas no texto da petição promovida pela Ordem dos Arquitectos (embora tenha sérias dúvidas relativamente à "coesão social" e à "criação de emprego", dúvidas que não me pareceu pertinente realçar no meu texto original). Lourenço Ataíde Cordeiro acha que é uma enorme contradição da minha parte não considerar as vantagens da arquitectura aí apresentadas como suficientes para justificar a revogação do Decreto 73/73. Não percebo onde está a contradição: para mim as vantagens apontadas estão longe de ser suficientes para o justificar. Admito que possa parecer pouco intuitivo, mas a minha posição filosófica é a de valorizar mais a liberdade de cada um do que todas estas vantagens, que pessoalmente reconheço, mas que muitos outros poderão não reconhecer como tal. Nada há de contraditório, pois. Eu prefiro a arquitectura, reconheço-lhe vantagens evidentes, mas prefiro que a arquitectura seja escolha livre dos clientes, e não uma imposição.
6. Não percebo a perplexidade de Lourenço Ataíde Cordeiro neste ponto. O que digo é que os nossos clientes têm um gosto que eu (e presumo que a grande maioria dos arquitectos) considera ser mau. Ora, parece evidente que uma das razões para a revogação do Decreto 73/73 é a da qualidade arquitectónica, incluindo a questão estética. Mas estética não é ética, sendo a sua valoração sempre subjectiva. Aquilo de que eu não gosto nas nossas construções (as moradias "típicas", com as suas cantarias, beirais, colunas e balaustradas), outros gostam e escolheram porque gostam. Subjacente à proposta de revogação está a ideia de que a obrigatoriedade de assinatura de arquitecto evitaria este estado de coisas, pois os arquitectos, pela sua formação, têm melhor gosto. Mas podem os arquitectos erigir-se em padrões únicos do bom gosto, que imporão pela força da lei? Devem fazê-lo? Quanto a mim, não.
Quanto ao "gosto", é realmente de estética que falo. Segundo o dicionário Texto Editora, "gosto" é, entre outras acepções, "(fig.) critério artístico". Segundo o dicionário Novo Aurélio, "gosto" pode ser a "faculdade de julgar os valores estéticos segundo critérios subjectivos, sem levar em conta normas preestabelecidas: gosto requintado".
Diz depois Lourenço Ataíde Cordeiro que eu lhe devo apresentar "alguém que saiba coordenar a complexidade de um projecto de arquitectura, com responsabilidade, com capacidade para se responsabilizar pelas suas consequências, que não tenha formação em arquitectura". Devolvo-lhe o desafio. Já que apoia uma petição que restringe as liberdades individuais, cabe-lhe o ónus da prova. Demonstre-me, pois, que só os membros da Ordem dos Arquitectos sabem "coordenar a complexidade de um projecto de arquitectura, com responsabilidade, com capacidade para se responsabilizar pelas suas consequências".
7. Aqui parece-me haver uma confusão. Lourenço Ataíde Cordeiro começa por falar em fiscalização, e termina falando em responsabilização. Fala em responsabilização a priori, e depois diz que a Ordem dos Arquitectos age a posteriori. Dá-me razão, portanto. Em última análise pode-se considerar que, do ponto de vista da responsabilidade, e numa sociedade com uma justiça operacional, as Ordens não têm qualquer papel relevante. Quanto à fiscalização a priori, ela existe hoje e existirá no futuro, inclusive para arquitectos. Esta avaliação a priori não desresponsabiliza o técnico, qualquer que seja a sua formação. Parece querer-se demonstrar que só um arquitecto é responsabilizável, mas isso é falso. Os outros profissionais também o são, como é evidente. Quanto à necessidade de contratar mais profissionais para fiscalizar, defendo o oposto. Com uma boa justiça, não seria necessária qualquer fiscalização prévia.
8. Os empregos não se devem conseguir através de leis que restrinjam a liberdade individual, a não ser que existam razões muito fortes para isso. Uma profissão não se deve impor pela lei, mas sim vencer no mercado, pela qualidade dos serviços prestados. Finalmente, é contraditório dizer que se tentou, através da formação de cada vez mais arquitectos, adequar a oferta à procura. Se assim fosse, porquê revogar o Decreto 73/73? É que o desejo de revogação surge justamente porque hoje parece haver muito mais oferta de arquitectos do que procura (pelo menos na argumentação dos arquitectos, pois não tenho dados oficiais que o demonstrem). Quando há excesso de oferta de um produto no mercado, o seu preço baixa. Se parte da oferta desse produto é importada, os produtores internos apressam-se a gritar por proteccionismo, argumentando com a pátria, a exploração de mão de obra barata, o desrespeito pelo ambiente, etc. O caso do "direito à arquitectura" é semelhante: aparentemente há excesso de oferta de projectistas no mercado, alguns deles "estrangeiros" (i.e., não-membros da Ordem dos Arquitectos). A petição pela revogação do Decreto 73/73 é, no fundo, um grito proteccionista.
9. Quanto à comparação com médicos, já expliquei porque não colhe: uma má prática de um médico pode matar, uma má prática de um arquitecto (naquilo que tem de específico, que um engenheiro civil, por exemplo, não faz) não mata.
10. Quando se fala de "agressão ao meio urbano" está-se a entrar no domínio da ambiguidade. Se a questão é estética, o argumento é fraco, pois gostos há muitos (uso de novo "gosto" propositadamente). Se são outros tipos de agressão (sombreamento, eliminação de vistas, impermeabilização de solos, etc.), devem estar cobertos pela lei ou pelos livres contratos entre os indivíduos, independentemente da classe profissional dos projectistas, como é evidente. A violação de leis e contratos é determinada e punida pela justiça.
11. Aqui reconheço a minha falha. Não deixei claras as minhas dúvidas acerca do impacte da arquitectura sobre a coesão social e a criação de emprego. Mas, mesmo esquecendo esta precisão, a verdade é que não se pode comparar a morte de alguém por má prática médica, por um erro de pilotagem ou pelo desabamento de um edifício, com as consequências da má arquitectura. Não: há uma enorme diferença entre uma morte por má prática médica e as consequências difusas e dificilmente quantificáveis ou demonstráveis da má arquitectura. Devolvo-lhe, mais uma vez, a pergunta, até porque é o texto da petição que faz a comparação da prática da arquitectura com a medicina, a pilotagem ou a engenharia civil: demonstre-me que a má prática da arquitectura tem consequências tão graves como a má prática da medicina.
12. Lourenço Ataíde Cordeiro não percebe como a satisfação de um cliente pode ficar afectada pela obrigação de assinatura de um arquitecto. Ora, isso acontece pelo simples facto de ele deixar de poder recorrer ao técnico que prefere (no caso de preferir um não arquitecto). Quanto à "responsabilidade social" do arquitecto, recordo que a sociedade é sempre uma entidade abstracta a que se recorre para justificar este tipo de coisas. Mas, como se pergunta a opinião à sociedade? Através de um referendo? Através dos seus representantes, nas autarquias eleitas? Acontece que as autarquias já impõem às edificações as limitações que entendem necessárias. Nem por isso a relação deixa de ser essencialmente entre o arquitecto e o seu cliente, onde a supervisão da câmara é vista geralmente, e por vezes muito justamente, como intrometida.
13. Já expliquei que eu não dispenso o arquitecto. Pretendo é que os outros tenham a liberdade de fazer como entendam melhor. Se dispensarem, tanto pior, se não dispensarem, tanto melhor. Quanto a perceber o que é um arquitecto, percebo perfeitamente. O pior que se pode fazer para defender a arquitectura é considerá-la uma actividade cabalística, cuja compreensão está vedada ao comum dos mortais, sendo acessível apenas a um conjunto de iniciados (onde invariavelmente não se encontra quem discorda).
14. Limito-me a observar que não compreendo porque é que, se "a arquitectura está em saldos", os honorários dos arquitectos não baixam, e a afirmar que o melhor juiz da relação qualidade preço de um projecto é o cliente.
1. Nas páginas da Ordem dos Arquitectos, mais especificamente nos seus estatutos, encontrei uma lista dos "actos próprios da profissão de arquitecto". Esses actos "consubstanciam-se em estudos, projectos, planos e actividades de consultadoria, gestão e direcção de obras, planificação, coordenação e avaliação, reportadas ao domínio da arquitectura, o qual abrange a edificação, o urbanismo, a concepção e desenho do quadro espacial da vida da população, visando a integração harmoniosa das actividades humanas no território, a valorização do património construído e do ambiente". Para o dicionário Texto Editora, o termo "arquitecto" vem "do Lat. architectu < Gr. árchi, principal + tékton, carpinteiro, pedreiro" e significa "o que faz a planta e dirige a construção de edifícios". A definição de arquitectura é muito simples, ainda segundo o mesmo dicionário, correspondendo à "arte de edificar ou de projectar e traçar planos", e não difere muito da definição feita pela própria Ordem dos Arquitectos, embora esta seja um pouco mais abrangente. O problema que levantei originalmente não está, por isso, na definição de arquitecto. Está no facto de a Ordem dos Arquitectos pretender que "só os arquitectos inscritos na Ordem podem [...] praticar" arquitectura. Os membros da Ordem dos Arquitectos pretendem uma definição mais estrita de arquitecto. Pretendem que "arquitecto" signifique "membro da Ordem dos Arquitectos", excluindo de tal definição todos os outros, pratiquem ou não arquitectura. Os membros da Ordem dos Arquitectos querem ter o exclusivo da prática da arquitectura.
É contra esta exclusividade que me insurjo. Que a Ordem dos Arquitectos pretenda atribuir títulos de acordo com critérios que são os seus, parece-me bem. Parece-me mal, isso sim, que o faça com o beneplácito do estado, que lhe confere o exclusivo direito de o fazer e de decidir quem pode "fazer a planta e dirigir a construção de edifícios". Dir-se-á que, nesse caso, eu sou contra as Ordens em geral. É parcialmente verdade. Nada teria contra as ordens se não fossem ordens, se fossem simples associações a que cada um era livre de se associar ou não. Essas associações poderiam ter papeis importantes, sobretudo se agissem concorrencialmente, i.e., se existissem várias para cada profissão.
É interessante reparar que a definição estrita de arquitectura, i.e., aquilo que os arquitectos fazem, não é usada pelos próprios arquitectos. É interessante ler, por exemplo, o que diz Pedro Jordão no seu Epiderme acerca do Muro de Berlim:
Para Koolhaas, que escreveu sobre o tema, a grande surpresa era o Muro ser arrebatadoramente belo (1). Considerou-o o gesto arquitectónico mais puramente urbano dos últimos séculos, e talvez não estivesse errado. Principalmente devido à sua vibrante dualidade, responsável pelos inúmeros significados, espectáculos e realidades que se desenvolviam ao longo dos seus 165 quilómetros. E a verdade é que, apesar da elementaridade cruel do seu programa, o Muro de Berlim foi o verdadeiro mito urbano do século XX.Terá sido o Muro de Berlim, "gesto arquitectónico mais puramente urbano dos últimos séculos", desenhado por arquitectos? Provavelmente não, como o não foram muitas das edificações por esse mundo fora a que a patine do tempo já conferiu o estatuto de património histórico e arquitectónico. Mas podemos dar outros exemplos de como a palavra arquitectura se aplicou, e continua a aplicar, a edificações que não foram desenhadas por arquitectos, pelo menos no sentido estrito da palavra.
Apesar do seu traçado irregular, a sua continuidade só era quebrada nos intervalos onde existiam postos fronteiriços. Mas mais interessante é observar como a sua configuração, nomeadamente no que toca às dimensões e aos materiais construtivos, se modificava de acordo com o contexto específico de cada segmento, conforme fosse mais metropolitano ou mais suburbano. Existia um muro baixo e um muro alto, que aparecia essencialmente nas zonas mais urbanas, onde o confronto era simbolicamente maior. Nos restantes sectores, o Muro assumia um carácter banal, como se a tensão do gesto arquitectónico desaparecesse no maior silêncio da envolvente.
[...]
O Muro foi a obra arquitectónica minimalista por excelência. É uma obra de ausência, a materialização das palavras de Mies: beinahe nicht (quase nada). O vazio como comportamento incomparável de violência.
[Negritos da minha autoria.]
Na Primavera de 1980 esteve em Portugal uma exposição itinerante do Centro de Criação Industrial do Centro Georges Pompidou. A exposição intitulava-se "Arquitectura de Engenheiros: Séculos XIX e XX". Desde a minha passagem pelo primeiro ano de Arquitectura que guardo o catálogo dessa exposição, onde se pode encontrar o seguinte extracto:
O debate arquitecto/engenheiro não terá em breve mais razão de ser. Resolvemo-lo quer defendendo o título de «construtor» que alia as características das duas profissões, quer preconizando um estreito trabalho de equipa. «Arquitecto? Engenheiro? Para quê colocar esta questão, debatê-la? Trata-se de fazer construções (...) Porque será que os construtores de aviões, de barragens, etc., não são qualificados com o título de arquitecto? O que leva a concluir imediatamente que o arquitecto deve saber forçosamente de engenharia; sem o que não poderá ter ideias seriamente defensáveis na matéria.Respondendo a Lourenço Ataíde Cordeiro, diria que um engenheiro de minas, ao desenhar um edifício, está de facto a assumir o papel de arquitecto, tal como o próprio Jean Prové, que começou a vida como ferrageiro, assumiu os papeis de designer e arquitecto. Usar a definição estrita de arquitectura para restringir a prática de arquitectura (no seu sentido lato) aos membros da Ordem dos Arquitectos, não passa pois de um truque semântico.
Há homens cuja formação é de engenharia que são grandes arquitectos. A recíproca também é verdadeira: será imaginável que os arquitectos se limitem a ser os estilistas da construção? Esta questão surge quando se debate a posição relativa do arquitecto face ao engenheiro, o que é grave.
A minha opinião é justamente que a questão não deve chegar a ser colocada.»
Jean Prouvé, "Une architecture par l'industrie", Les Ed. d'Architecture, Zurique, 1971.
2. Quem será capaz de cumprir o que a nossa Constituição preconiza, i.e., construir "uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar"? Apenas arquitectos? Reitero que não. Que pura e simplesmente não é verdade. Que há muita gente que, não sendo membro da Ordem dos Arquitectos, é perfeitamente capaz de o fazer. É evidente que o requisito da Constituição, que diz respeito ao direito à habitação, é mínimo, podendo esses requisitos ser cumpridos por habitações com características e qualidades arquitectónicas totalmente diferentes. Mas uma Constituição deve ser mínima, restringindo-se àquilo que é essencial (e todos sabemos que a nossa Constituição não peca por defeito). Finalmente, se a Ordem dos Arquitectos julga que apenas um seu membro é capaz de projectar uma habitação nas condições indicadas, cabe-lhe o ónus de o provar.
3. Neste ponto, pelos vistos, estamos de acordo. Mas se assim é, se "o ordenamento do território e a criação de parques e reservas não são tarefas exclusivas do arquitecto, sendo que os engenheiros, os paisagistas, os economistas, os geógrafos, os sociólogos, entre outros, têm responsabilidades nesse campo", porque é que, na petição promovida pela Ordem dos Arquitectos, o "direito à arquitectura", entendido como o direito da Ordem restringir a prática da arquitectura aos seus membros, surge como "decorrência lógica" do direito ao "ambiente e qualidade de vida"?
4. Será que, como Lourenço Ataíde Cordeiro afirma, muitos "não contratam arquitectos porque não querem e porque são [..] livres" e "por isso põem no mercado edifícios de habitação precários, sem qualidade arquitectónica, mal implantados urbanisticamente, que são autênticas agressões para o ambiente"? Se os edifícios são precários, e são vendidos como bons, o assunto deve ser resolvido na justiça. Se se argumentar que a justiça não funciona, que provavelmente não punirá os responsáveis, concordarei, mas direi também que, nesse caso, do que precisamos é de reformar a justiça, e não de resolver o problema "de cernelha", restringindo liberdades individuais no processo. Quanto à má qualidade arquitectónica, é verdade para a grande maioria dos edifícios construídos em Portugal, infelizmente. Quando à implantação urbanística, também pode acontecer, embora aqui a responsabilidade seja partilhada com urbanistas e municípios. Quanto a serem agressões para o ambiente, tenho muitas dúvidas, sobretudo se por isso se entende "ambiente natural". Mas a questão importante a responder aqui é a de saber se esses potenciais problemas justificam as restrições à liberdade individual que o "direito à arquitectura" preconiza. Na minha opinião a resposta é não.
5. É verdade que concordo globalmente com as citações da Resolução do Conselho da União Europeia feitas no texto da petição promovida pela Ordem dos Arquitectos (embora tenha sérias dúvidas relativamente à "coesão social" e à "criação de emprego", dúvidas que não me pareceu pertinente realçar no meu texto original). Lourenço Ataíde Cordeiro acha que é uma enorme contradição da minha parte não considerar as vantagens da arquitectura aí apresentadas como suficientes para justificar a revogação do Decreto 73/73. Não percebo onde está a contradição: para mim as vantagens apontadas estão longe de ser suficientes para o justificar. Admito que possa parecer pouco intuitivo, mas a minha posição filosófica é a de valorizar mais a liberdade de cada um do que todas estas vantagens, que pessoalmente reconheço, mas que muitos outros poderão não reconhecer como tal. Nada há de contraditório, pois. Eu prefiro a arquitectura, reconheço-lhe vantagens evidentes, mas prefiro que a arquitectura seja escolha livre dos clientes, e não uma imposição.
6. Não percebo a perplexidade de Lourenço Ataíde Cordeiro neste ponto. O que digo é que os nossos clientes têm um gosto que eu (e presumo que a grande maioria dos arquitectos) considera ser mau. Ora, parece evidente que uma das razões para a revogação do Decreto 73/73 é a da qualidade arquitectónica, incluindo a questão estética. Mas estética não é ética, sendo a sua valoração sempre subjectiva. Aquilo de que eu não gosto nas nossas construções (as moradias "típicas", com as suas cantarias, beirais, colunas e balaustradas), outros gostam e escolheram porque gostam. Subjacente à proposta de revogação está a ideia de que a obrigatoriedade de assinatura de arquitecto evitaria este estado de coisas, pois os arquitectos, pela sua formação, têm melhor gosto. Mas podem os arquitectos erigir-se em padrões únicos do bom gosto, que imporão pela força da lei? Devem fazê-lo? Quanto a mim, não.
Quanto ao "gosto", é realmente de estética que falo. Segundo o dicionário Texto Editora, "gosto" é, entre outras acepções, "(fig.) critério artístico". Segundo o dicionário Novo Aurélio, "gosto" pode ser a "faculdade de julgar os valores estéticos segundo critérios subjectivos, sem levar em conta normas preestabelecidas: gosto requintado".
Diz depois Lourenço Ataíde Cordeiro que eu lhe devo apresentar "alguém que saiba coordenar a complexidade de um projecto de arquitectura, com responsabilidade, com capacidade para se responsabilizar pelas suas consequências, que não tenha formação em arquitectura". Devolvo-lhe o desafio. Já que apoia uma petição que restringe as liberdades individuais, cabe-lhe o ónus da prova. Demonstre-me, pois, que só os membros da Ordem dos Arquitectos sabem "coordenar a complexidade de um projecto de arquitectura, com responsabilidade, com capacidade para se responsabilizar pelas suas consequências".
7. Aqui parece-me haver uma confusão. Lourenço Ataíde Cordeiro começa por falar em fiscalização, e termina falando em responsabilização. Fala em responsabilização a priori, e depois diz que a Ordem dos Arquitectos age a posteriori. Dá-me razão, portanto. Em última análise pode-se considerar que, do ponto de vista da responsabilidade, e numa sociedade com uma justiça operacional, as Ordens não têm qualquer papel relevante. Quanto à fiscalização a priori, ela existe hoje e existirá no futuro, inclusive para arquitectos. Esta avaliação a priori não desresponsabiliza o técnico, qualquer que seja a sua formação. Parece querer-se demonstrar que só um arquitecto é responsabilizável, mas isso é falso. Os outros profissionais também o são, como é evidente. Quanto à necessidade de contratar mais profissionais para fiscalizar, defendo o oposto. Com uma boa justiça, não seria necessária qualquer fiscalização prévia.
8. Os empregos não se devem conseguir através de leis que restrinjam a liberdade individual, a não ser que existam razões muito fortes para isso. Uma profissão não se deve impor pela lei, mas sim vencer no mercado, pela qualidade dos serviços prestados. Finalmente, é contraditório dizer que se tentou, através da formação de cada vez mais arquitectos, adequar a oferta à procura. Se assim fosse, porquê revogar o Decreto 73/73? É que o desejo de revogação surge justamente porque hoje parece haver muito mais oferta de arquitectos do que procura (pelo menos na argumentação dos arquitectos, pois não tenho dados oficiais que o demonstrem). Quando há excesso de oferta de um produto no mercado, o seu preço baixa. Se parte da oferta desse produto é importada, os produtores internos apressam-se a gritar por proteccionismo, argumentando com a pátria, a exploração de mão de obra barata, o desrespeito pelo ambiente, etc. O caso do "direito à arquitectura" é semelhante: aparentemente há excesso de oferta de projectistas no mercado, alguns deles "estrangeiros" (i.e., não-membros da Ordem dos Arquitectos). A petição pela revogação do Decreto 73/73 é, no fundo, um grito proteccionista.
9. Quanto à comparação com médicos, já expliquei porque não colhe: uma má prática de um médico pode matar, uma má prática de um arquitecto (naquilo que tem de específico, que um engenheiro civil, por exemplo, não faz) não mata.
10. Quando se fala de "agressão ao meio urbano" está-se a entrar no domínio da ambiguidade. Se a questão é estética, o argumento é fraco, pois gostos há muitos (uso de novo "gosto" propositadamente). Se são outros tipos de agressão (sombreamento, eliminação de vistas, impermeabilização de solos, etc.), devem estar cobertos pela lei ou pelos livres contratos entre os indivíduos, independentemente da classe profissional dos projectistas, como é evidente. A violação de leis e contratos é determinada e punida pela justiça.
11. Aqui reconheço a minha falha. Não deixei claras as minhas dúvidas acerca do impacte da arquitectura sobre a coesão social e a criação de emprego. Mas, mesmo esquecendo esta precisão, a verdade é que não se pode comparar a morte de alguém por má prática médica, por um erro de pilotagem ou pelo desabamento de um edifício, com as consequências da má arquitectura. Não: há uma enorme diferença entre uma morte por má prática médica e as consequências difusas e dificilmente quantificáveis ou demonstráveis da má arquitectura. Devolvo-lhe, mais uma vez, a pergunta, até porque é o texto da petição que faz a comparação da prática da arquitectura com a medicina, a pilotagem ou a engenharia civil: demonstre-me que a má prática da arquitectura tem consequências tão graves como a má prática da medicina.
12. Lourenço Ataíde Cordeiro não percebe como a satisfação de um cliente pode ficar afectada pela obrigação de assinatura de um arquitecto. Ora, isso acontece pelo simples facto de ele deixar de poder recorrer ao técnico que prefere (no caso de preferir um não arquitecto). Quanto à "responsabilidade social" do arquitecto, recordo que a sociedade é sempre uma entidade abstracta a que se recorre para justificar este tipo de coisas. Mas, como se pergunta a opinião à sociedade? Através de um referendo? Através dos seus representantes, nas autarquias eleitas? Acontece que as autarquias já impõem às edificações as limitações que entendem necessárias. Nem por isso a relação deixa de ser essencialmente entre o arquitecto e o seu cliente, onde a supervisão da câmara é vista geralmente, e por vezes muito justamente, como intrometida.
13. Já expliquei que eu não dispenso o arquitecto. Pretendo é que os outros tenham a liberdade de fazer como entendam melhor. Se dispensarem, tanto pior, se não dispensarem, tanto melhor. Quanto a perceber o que é um arquitecto, percebo perfeitamente. O pior que se pode fazer para defender a arquitectura é considerá-la uma actividade cabalística, cuja compreensão está vedada ao comum dos mortais, sendo acessível apenas a um conjunto de iniciados (onde invariavelmente não se encontra quem discorda).
14. Limito-me a observar que não compreendo porque é que, se "a arquitectura está em saldos", os honorários dos arquitectos não baixam, e a afirmar que o melhor juiz da relação qualidade preço de um projecto é o cliente.
2003-11-22
Associações de estudantes de medicina: tirocínio corporativista
No Público de quinta-feira, as associações de estudantes de medicina afirmam que não querem mais vagas nem cursos de medicina em escolas privadas. Porquê? Simples: "Não há falta de médicos". Além disso, "o facto de se abrirem mais vagas pode levar a que daqui a uns anos os médicos estejam a ser formados para o desemprego, o que será um desperdício de recursos públicos, pois é um curso caro." E acrescentam que "somos contra a criação de novas faculdades porque as que existem são suficientes para a nossa população". Algumas perguntas aos estudantes:
- Se há falta de médicos, porque se recrutam em Espanha? (Não me percebam mal: acho muito bem que venham para cá espanhóis.)
- Onde se baseiam para afirmar que em breve haverá médicos a mais? Como podem ter a certeza? E se falharem a previsão, e os médicos faltarem? Assumem alguma responsabilidade?
- Em que é que a criação de novas faculdades afecta os actuais estudantes? Se não afecta, porque se manifestam sobre a abertura de novas faculdades?
- Estão realmente preocupados com as finanças públicas? Estariam de acordo em erradicar esse problema passando a pagar propinas apropriadas, de forma a que a sua formação não fosse suportada por todos nós (eu incluído)?
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