2003-12-18

Os leitores

Um comentário de Carlos, demasiado longo para ficar simplesmente no sistema de comentários:
Tenho pensado nesta questão desde há algum tempo. No início, a proibição de símbolos religiosos na escola parecia-me um desrespeito das liberdades do indivíduo. Mas, reflectindo melhor sobre o assunto, formei uma opinião diferente.

Comecei por concluir que, na maior parte dos casos (e os outros casos nunca serão para desprezar), a ostentação de símbolos religiosos numa escola, frequentada, maioritariamente, por menores de idade, não é um exercício de livre vontade. Recordo-me da minha infância e da minha resistência sem tréguas ao ingresso num grupo de catequese (sim, é verdade, a minha idade ainda não atingia os dois algarismos quando comecei a achar pouco razoável a ideia da existência de um deus). Podem dizer que os pais têm o direito de escolha da educação religiosa dos seus filhos até que estes atinjam a maioridade. Terão? Se eu tiver filhos e achar que a escola os corrompe moralmente, tenho o direito de os impedir de a frequentar até aos dezoito anos? Dirão que a ausência de educação escolar marcará um ser humano para toda a sua vida e que os dezoito anos perdidos nunca poderão ser recuperados. Têm razão. Mas uma educação religiosa não poderá marcar irremediavelmente uma jovem consciência? Não poderá impedir uma mente formada de optar por diversos sistemas ético-morais?

Claro que existem muitas mais heranças transmitidas familiarmente; a isso chama-se cultura. Mas existe alguma, como a herança religiosa, que possa coibir o pensamento livre para o resto de uma vida? Muita gente muda de ideologia política, outros aceitam novos paradigmas científicos (com mais ou menos hesitação) que lhes derrubam o trabalho de uma vida, alguns abdicam de um sistema filosófico em favor de outro. Mas o abalo da base religiosa só acontece por motivos raros e muito fortes que, muitas vezes, deixam uma amargura que não se desvanece. Alguém conhece um crente que, depois de uns dias (ou semanas, ou meses) de meditação, leitura e diálogo, tenha dito serenamente: “Talvez Deus não exista. Acho que andei enganado durante toda a vida.”

Tenho observado que a maior parte das mentes religiosas mais abertas adquiriram a sua espiritualidade numa fase adulta da vida, conseguindo conciliar a crença numa divindade (quase sempre não interventiva) com sistemas filosóficos e/ou científicos, cuja essência parece, numa primeira observação, totalmente incompatível com a religião. Será coincidência?

Não será que uma sociedade tem a obrigação de limitar a exposição das suas crianças ao poder hipnótico dos símbolos religiosos? Será que a religião não tem força suficiente para se impor de outra forma, como outras ideias se impõem, nas mentes de jovens e adultos?

Outras questões: Até onde deve chegar a tolerância? O uso de burka deve ser permitido? As aulas devem ser interrompidas para a oração dos muçulmanos? O dia 25 de Dezembro deve ser feriado?

A apresentação do genesis, num trabalho escolar sobre a evolução, deve ser tolerada e avaliada?

E uma última pergunta: a exibição de símbolos satânicos deve ser tolerada numa escola pública? (Lembro, a propósito desta questão, que num país da união europeia, a Grécia, o satanismo é considerado crime – e não é necessário que a sua ostentação seja feita num lugar público para ser punido).

Ninguém impede as crianças francesas de colocar o véu ou o crucifixo quando saem da escola. Se eu fosse pai, preferia que os meus filhos, frequentassem uma instituição livre de símbolos religiosos (e políticos). Já existe demasiada pressão de grupo na vida das crianças.

É esta a minha opinião, não muito convicta, ainda tenho muitas reservas em relação a um assunto que, sem dúvida, pode estar a perturbar a liberdade de alguns.

Até à maioridade os indivíduos não são verdadeiramente livres. Apesar disso, preservam um grau de liberdade que vai informalmente crescendo até à maioridade, momento em que, segundo a lei, passam a ser cidadãos plenos. Até essa idade, a responsabilidade pela educação dos indivíduos é dos pais (ou dos encarregados de educação). Essa responsabilidade traz consigo algumas prerrogativas, tais como a liberdade de, dentro de determinados limites muito largos, escolherem a educação a dar aos seus filhos. Quando se proibe a utilização de véus, está-se a violar certamente a liberdade de alguém. Pode ser a liberdade dos pais, ou a das filhas, ou possivelmente a liberdade de ambos. Essa violação da liberdade não decorre do facto de o seu exercício entrar em conflito com a liberdade de outrem. Usar um véu em nada viola a liberdade de terceiros. A verdade nua é que o uso do véu viola simplesmente o desejo jacobino de uniformização da sociedade (pelo menos na esfera de acção do estado, já que a batalha pela uniformização está claramente perdida na sociedade como um todo). Trata-se, pois, dos últimos estertores do igualitarismo à força.

Também eu fui educado catolicamente. Também eu era levado à missa, contra a minha vontade. Também eu cedo abandonei a religião. E no entanto, acho que os meus pais fizeram exactamente aquilo que deviam. Tentaram ensinar-me os seus valores, a sua cultura, a sua religião. Quantas coisas, enquanto menores, fazemos contra a nossa vontade! É inevitável e, desde que não se ultrapassem limites da decência, é mesmo desejável que assim seja. Poderá uma educação religiosa "marcar irremediavelmente uma jovem consciência? Não poderá impedir uma mente formada de optar por diversos sistemas ético-morais?", pergunta. A minha resposta é um rotundo não, pois não estamos a falar de lavagens ao cérebro nem de incitamento à violência, não estamos a falar das madrassas afegãs ou paquistanesas, em suma. Estamos a falar de verdadeira educação, embora com um fundo religioso. Assim sendo, essa educação, muito pelo contrário, pode contribuir para "uma mente formada [...] optar por diversos sistemas ético-morais". Se optei pelo agnosticismo, foi porque fui educado como católico. Quando pergunta se "alguém conhece um crente que, depois de uns dias (ou semanas, ou meses [ou anos]) de meditação, leitura e diálogo, tenha dito serenamente: 'Talvez Deus não exista. Acho que andei enganado durante toda a vida.'", a minha resposta só pode ser um taxativo sim. Sim, conheço. Como conheço casos inversos, embora mais raros.

Pergunta-se também se, tendo filhos e achando que "a escola os corrompe moralmente", terá "o direito de os impedir de a frequentar até aos dezoito anos". Mais uma vez a resposta é sim. Tem todo o direito. Não tem, claro, o direito de negar educação aos seus filhos, mas pode perfeitamente decidir que eles não devem frequentar escolas com cujo ensino não concorda. Se não concordar com o ensino em nenhuma escola, e não os colocar em nenhuma delas, terá a obrigação de os educar sozinho. Essa escolha é permitida, e bem, pela lei.

Quando se pergunta se "não será que uma sociedade tem a obrigação de limitar a exposição das suas crianças ao poder hipnótico dos símbolos religiosos?", está a entrar por terreno muito, muito perigoso. Quem é "a sociedade" para decidir uma coisa dessas? Conhece-a? Aquilo a que se chama sociedade é um simples agregado de indivíduos com algumas características em comum, mas com opiniões inconciliáveis. Mesmo que a maioria veja os perigos que aponta na religião - e eles são quase totalmente imaginários - não teria nunca o direito de interferir com a educação que os pais preferem para os seus filhos.

É evidente que em todos estes aspectos não é possível estabelecer uma fronteira clara para a liberdade dos indivíduos. Onde termina a liberdade dos pais? A partir de onde é obrigação do estado intervir? É uma boa questão, a que não se pode responder senão de uma forma genérica: termina onde começa a liberdade dos filhos, que é uma liberdade de cidadão menor, uma liberdade não-plena. Será admissível usar burca? No espaço público geralmente não. Não porque seja um símbolo religioso, ou um sinal de opressão, mas sim porque há uma proibição legal de andar de cara tapada por questões de segurança pública. Há opressão? Combata-se. Há sinais exteriores de opressão? Investigue-se. Há sinais exteriores que, em alguns casos (tais como o caso do véu), podem significar opressão? Nada a fazer. Enquanto houver a possibilidade de a sua ostentação ser voluntária, é inadmissível proibir tais sinais pela lei.

Quanto aos símbolos satânicos, a minha resposta é que não devem ser proibidos, excepto se corresponderem a um claro apelo à violência. Enquanto assim não for, a liberdade individual está primeiro.

Diz, finalmente, que "Se eu fosse pai, preferia que os meus filhos, frequentassem uma instituição livre de símbolos religiosos (e políticos)". Está no seu direito. Para isso existem as escolas privadas, que estabelecem os seus próprios critérios livremente, e que cada um tem o direito de frequentar livremente, desde que aceite as suas regras. O problema é quando se pretende impor uma tal regra nas escolas estatais, única escolha para muitos pais em países onde a igualdade de oportunidades na educação não existe, onde o estado detém as escolas, em vez de ajudar os mais necessitados a pagar a educação dos filhos. Talvez esta história seja a demonstração cabal de que o estado, na educação, deveria reduzir-se cada vez mais a um papel regulador.

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