2003-12-21

Aborto: posições inaceitáveis

O Padre Feytor Pinto, em entrevista conduzida por Maria João Avilez e transmitida hoje na SIC Notícias, referiu-se à eutanásia e ao aborto (de memória, não garanto as palavras exactas, apenas o sentido):
A eutanásia está na moda. Hoje, quando alguém nos incomoda elimina-se, como Hitler fazia. Quando não há paciência para os velhos, vemo-nos livres deles. Quando uma criança nos incomoda, aborta-se.
São estas afirmações, bem como as de "aqui [na barriga] mando eu", no extremo oposto, que nada contribuem para a discussão sobre estes assuntos tão delicados. Todas as subtilezas, qualificações, cuidados que devem ser colocados ao defender esta ou aquela posição são esquecidos, são, aliás, deliberadamente ignorados, sobrando apenas a afirmação panfletária. No meio desta cacofonia de argumentos, os únicos verdadeiramente racionais e cuidadosos com que alguma vez me deparei foram os de Peter Singer. Paradoxalmente, não concordo de todo com as conclusões. Mas vale a pena lê-lo para perceber como se argumenta, como se pensa, como se evita a simplificação. Como se pode tentar ser coerente ou, pelo contrário, como se pode optar deliberadamente pela incoerência ao reconhecer os limites da razão (coisa que Peter Singer não faz, de resto). Argumentos como o direito da mulher sobre o seu corpo são, naturalmente, absurdos: é que se trata, justamente de outro corpo, de outro ser, que será morto. Peter Singer discute seriamente em que circunstâncias é errado tirar uma vida. Essa discussão é a mais importante a fazer. É, também, aquela onde será mais difícil chegar a acordo. Todos, ou quase todos, concordamos que o infanticídio é um crime horrível. Todos, ou quase todos, aceitaremos como válido o argumento, de Peter Singer, de que não há diferença material entre matar após o nascimento ou antes do nascimento, ou que, pelo menos, se houver diferença, deve-se à idade do ser humano, e não ao acto do nascimento em si. Quando se fala acerca do aborto, os tempos são fundamentais. Muitos, embora não todos, concordarão que um óvulo acabado de fecundar não merece o mesmo respeito que um ser humano adulto, ou que um bebé com nove meses após a concepção. Não consegui (ainda?) encontrar nenhum argumento verdadeiramente convincente para o limite das 12 semanas de idade. Nem é claro se deva estabelecer algures uma fronteira arbitrária. Talvez a solução passasse por uma gradualidade temporal na penalização do acto, correspondente à nossa intuição moral sobre a sua gravidade crescente. Mas será possível fazê-lo? Segundo alguns, trata-se de um problema de consciência, e como tal deve ficar à consciência de cada um, sem penalização legal. Mas este argumento é, também, absurdo. Não o aplicamos, por exemplo, à violência doméstica, porque o haveríamos de aplicar aqui? Decididamente, precisamos de verdadeiras discussões, e não de guerras de palavras extremadas e panfletárias.

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