2003-10-07

Incompetências O "Romance da Raposa", de Aquilino Ribeiro, é provavelmente a melhor obra de literatura portuguesa escrita para crianças. Recordo-me bem de ouvir a história pela boca da minha mãe. A raposa Salta-Pocinhas "matreira, fagueira, lambisqueira" e as suas aventuras, marcaram-me para sempre.

Pouco depois de nascer o meu filho, e ainda bem longe da idade em que lhe poderia começar a contar a história, comprei, já não sei em que livraria, um exemplar de uma velha edição do "Romance da Raposa". Queria guardá-lo para lho ler logo que crescesse. Passados uns anos encontrei na Bertrand, sua editora original, uma nova edição do livro, agora impresso em bom papel e com as ilustrações no seu original a cores. Mais uma vez não resisti e comprei um exemplar.

Hoje decidi finalmente que era altura de ler o "Romance da Raposa" ao meu filho. Peguei na edição mais recente e comecei. A páginas tantas deparei-me com uma vírgula a mais, entre verbo e complemento. Estranhei, mas admiti que fosse erro meu e prossegui. Pouco depois surge outra gralha: "Quem [sic] nunca te faltaria a asinha de um frango para dar...". Era demais. Impossível. Conferi na edição mais antiga e concluí que a Bertrand conseguiu o feito notável de introduzir gralhas a eito numa reedição. Está verdadeiramente de parabéns. Só não sei se devolva o livro, se lhe faça um auto-de-fé na lareira, num dia frio de inverno, como fiz a uma péssima tradução de Goethe que tive a infelicidade de comprar.

Infelizmente não é caso único no que toca a literatura para crianças. Por exemplo, no "Primeiro Livro de Poesia", uma excelente selecção de poemas feita por Sophia de Mello Breyner Andresen, faltam versos em duas estrofes d'"A Rainha de Kachmir - Serenata de Hilário", de Gomes Leal.

Mas o pior caso, incompreensível para mim, é o livrinho "O Segredo do Rio", de Miguel Sousa Tavares. Não compreendo como pôde o autor publicar um texto tão mau. Alguns exemplos avulsos:
[...] havia sempre fruta fresca durante quase todo o ano.

As pessoas que moravam naquele lugar e na aldeia próxima bebiam daquela água, cozinhavam com ela e pescavam no rio e por isso todos tinham muito cuidado para não sujar o rio, deitando lixo ou outras coisas lá dentro.

De repente ouviu um grande barulho na água atrás de si e voltou-se ainda a tempo de ver um enorme peixe que dava um salto imenso fora de água, todo torcido como se fosse uma bailarina, e, depois de ficar um instante suspenso no ar, olhando tudo à roda, caiu outra vez dentro de água, com um grande estardalhaço, salpicando água até onde estava o rapaz.

Alimento-me de lagartos
[sic] do fundo do rio. [diz o peixe]
Ao fim de alguns parágrafos, armei-me de um lápis e comecei a "corrigir" o texto. Mas foi inútil. A certa altura o absurdo atinge níveis incríveis:
A vida no campo é assim: nos anos de abundância, quando chove muito e nas alturas certas, enchem-se os celeiros e as despensas de comida, todos ficam felizes e há festas nas aldeias a todo o tempo para celebrar as colheitas. Nos anos de seca, os prados ficam secos, a fruta apodrece nas árvores, a caça foge, e as pessoas andam tristes e às vezes passam fome. Tudo o que, mesmo assim, conseguiam produzir, vendiam para as cidades, para poderem comprar as outras coisas que precisavam, como roupa para os filhos e os remédios, para quando eles estivessem doentes. Assim, as pessoas das cidades, que têm sempre comida, julgam que no campo nunca falta nada de comer, mas não é verdade: os camponeses vendem o melhor que têm para a cidade e ficam com os restos e com o pior, que às vezes não lhes chega.
Irrecuperável.

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