2003-10-08

A demência dos calendários de avaliação universitários Chegou-me às mãos um relato que mostra bem uma das características mais estúpidas do sistema universitário português: a avaliação e seus calendários. Em Abril passado já me tinha referido a este assunto a respeito do ISCTE, pelo que não faço mais comentários. Limito-me a dizer que alterei todos os nomes e que o docente que escreve este relato lecciona as disciplinas A e B:

Muitas vezes o principal encontra-se nos detalhes. Durante este mês de Setembro o meu contacto com a secretaria e com os alunos revelou-se prolífico de detalhes surpreendentes. A exposição segue a habitual ordem cronológica.

-1 - O Prof. P, presidente do departamento, avisa-me da lista de alunos inscritos em época especial de exames, indicando-me que tenho um aluno, trabalhador estudante, inscrito em B e um aluno, dirigente associativo, inscrito em A. Porém, a inscrição deste dirigente associativo está "ainda condicional pois o processo não está formalizado a 100%, não tendo ainda data definitiva marcada, embora já se saiba que terá lugar de 1 a 6 de Setembro". Até aqui tudo perfeito.

0 - O Prof. P e o Prof. Q (coodenador da disciplina e director da licenciatura) sugerem que, como os alunos de A e de B são distintos, os exames podem realizar-se no mesmo dia. Tudo perfeito até aqui. A partir de agora é que surgem os contactos com a secretaria e os contactos com os alunos.

1 - O aluno de B contacta-me para marcar um horário de dúvidas comigo para a época especial de trabalhador estudante e para saber a data do exame. Marcamos uma data provisória, pois aguardo ainda o contacto do aluno de A. Porém, o aluno de A não me contacta, apesar de avisos na página da disciplina para o fazer.

2 - Tento confirmar na secretaria as inscrições dos alunos. O de B está correctamente inscrito (estudante trabalhador). O de A fez o pedido, mas a inscrição ainda não está válida, pois a secretaria ainda não recebeu uma acta da associação de estudantes (não percebi se para provar que é dirigente associativo, se para provar que no dia de um dos exame das épocas normais ele tinha estado impossibilitado de ir ao exame). A situação é pois a de ter um aluno inscrito em B e um outro "semi-inscrito" em A. Estamos na véspera do início da semana da época especial, a gestão de salas da instituição quer que eu marque os exames, mas não o posso fazer. A secretaria diz que o normal é os alunos contactarem os docentes para marcarem uma data de exame, que deve haver um acordo a respeito das datas.

3 - Apesar do aluno de A não me contactar, marco os dois exames para quinta-feira (mesmo local e hora), penúltimo dia da época especial, para dar tempo para o aluno de A me contactar e para a secretaria resolver a inscrição pendente deste aluno "fantasma".

4 - Durante a semana de Época Especial tenho:
  • uma tarde de horário de dúvidas com o aluno de B;
  • uma tarde a preparar o exame de B;
  • de esperar até à véspera por um contacto do dirigente associativo para saber se devo fazer o exame ou não;
  • de elaborar o exame de A de véspera, não vá o dirigente associativo aparecer...
  • uma tarde a vigiar o exame de B.
5 - Sobre o ponto 4 há a acrescentar que o aluno de A (dirigente associativo) não aparece e que o aluno de B (estudante trabalhador) quer desistir após uma hora de exame. Apesar de encorajado para continuar, entrega no fim do tempo um exame avaliado em seis valores.

6 - Depois desse exame, encontro durante o percurso para o gabinete um outro aluno, que nunca me tinha aparecido em nenhuma aula de B, mas que já me tinha surgido antes da 2ª época a dizer que só lhe faltava B para acabar o curso, que queria umas aulas de dúvidas para essa 2ª época e que tinha desistido do exame 30 minutos depois de o começar. Não me lembrava que ele tinha nessa altura prometido aparecer em época especial. Ora, eu acabo de sair da época especial de B (e supostamente também de A) há minutos e ele não apareceu! Esclareceu-se tudo em três frases:
- Oh professor, então em Dezembro lá estarei!
- Dezembro?!
- Sim, na época especial para estudantes finalistas!
7 - Entrego a pauta provisória de B na secretaria e assino a pauta final no mesmo dia. Porém, sempre com simpatia, fico a saber que:
  • afinal o aluno de A "não faltou";
  • que ele ainda tem a inscrição pendente (falta a tal acta);
  • que só quando estiver a situação regularizada é que me irá contactar para fazer o exame;
  • que o exame deve ser combinado para uma data que esteja compreendida numa janela temporal de 60 dias após a inscrição;
  • que ele pode sempre pedir outro exame de 60 em 60 dias!
  • que o que acabou de ocorrer foi a época especial para estudantes trabalhadores;
  • que a época especial para estudantes finalistas é em Dezembro;
  • que a época especial para dirigentes associativos é quando lhes apetecer, repetida de dois em dois meses, presumo que até obterem aprovação!
8 - Como é de suspeitar, as surpresas ainda não terminaram. O aluno de B envia-me uma mensagem a lamentar-se que realmente lhe correu mal o exame e a perguntar se não é possível fazer outro! Respondo que não há qualquer possibilidade legal de marcar mais avaliações este ano lectivo. Lembrei que houve em B:
  • um teste a meio do semestre ao qual faltou;
  • uma frequência, com repetição do primeiro teste onde obteve sete valores (logo, 3,5 valores no final);
  • um exame de 1ª época, com repetição dos dois testes, ao qual faltou;
  • um exame de 2ª época, com nova repetição dos dois testes, no qual obteve 3,0 valores;
  • uma época especial de trabalhador estudante, onde obteve 6,3 valores, o que o excluiu de aceder a uma oral.
A impossibilidade de marcar mais um exame é legal, mas acima de tudo é uma questão de igualdade de todos os alunos no acesso à avaliação.

9 - Não, ainda não terminou! Finalmente o aluno o dirigente associativo contacta-me: pede desculpa por nunca me ter dito nada (andei semanas às escuras, sem saber quando haveria um exame de um "fantasma semi-inscrito"!). Marcamos o exame. É para daqui a poucos dias (felizmente o exame já foi redigido para a outra vez).

10 - Na véspera, recebo uma mensagem do aluno de A, dirigente associativo. A secretaria contactou-o informando-o que afinal a inscrição não era válida, pois ainda não haviam decorrido 60 dias desde a última data de avaliação (que presumo que seja a data da 2ª época normal)!

Andámos mais de um mês com isto tudo e afinal a inscrição que não seria válida senão depois da chegada da tal acta da associação de estudantes... era impossível, pois o aluno nunca se poderia ter inscrito durante Setembro! O exame de A para o dirigente associativo nunca poderia pois ter coincidido com a época para o trabalhador estudante de B, que tem datas fixas. Desde o início que a secretaria laborava num erro.

Notas finais:

O estudante trabalhador que vai pedindo exames sucessivos frequentou praticamente todas as aulas de B ao longo de todo o semestre, sendo a entidade empregadora a empresa do pai. Pareceu-me sempre um aluno muito interessado, e é com pena que vejo o seu fraquíssimo desempenho no semestre, acreditando mesmo que o pico de trabalho só surgiu durante a época de exames, tal como ele afirma. A existência legal de certas inibições face à existência de graus de parentesco existe em tantas outras coisas: familiares a avaliar em concursos públicos, atestados médicos de médicos familiares, etc. Parece haver uma lacuna de legislação no caso dos estudantes trabalhadores. Mas este nem é o ponto mais relevante...

O aluno de A terminou a mensagem de anulação do exame do dia seguinte dizendo que lá para o meio de Outubro me irá contactar, pois nessa altura, seguindo a secretaria, já será possível pedir a época especial para dirigentes associativos. Uma espécie do hollywoodesco "I'll be back!". O finalista também já prometeu para Dezembro que "he'll be back"...

Termino com uma sugestão de alteração ao vasto articulado do estatuto da carreira docente universitária, no que respeita às funções do docente. Proponho um ponto único com algumas alíneas de regulamentação:

Artigo único

Ao docente universitário incumbem duas actividades: leccionar aulas e avaliar alunos. A primeira actividade deve desenrolar-se segundo os calendários da instituição, ocupando de 6 a 9 horas semanais. O docente tem o dever de permanecer na segunda actividade durante o tempo restante, segundo o seguinte articulado:
  • a) O docente deve permanentemente pensar na nota de cada aluno de uma forma personalizada, atendendo às características psico-sociológicas particulares de cada um.
  • b) Deve proceder a uma avaliação destas características e propor um método de avaliação específico a cada aluno, o qual deverá ser discutido com ele por forma a envolvê-lo no seu projecto didáctico específico.
  • c) O docente deve estar disponível para responder com um processo de avaliação ajustado aos dias que o aluno se sinta apto, certificando-se previamente que a existência do acto não acarretará consequências traumáticas ao aluno.
  • d) Para cada acto de avaliação acordado segundo c), o docente deve, nos horários de dúvidas associados, fazer resumos de toda a matéria da cadeira, garantindo igualdade de acesso aos conhecimentos a quem não teve disponibilidade para frequentar as aulas.
  • e) Deve ainda reiterar antes do início da prova que ela poderá ser repetida logo que o avaliando o deseje, a qualquer dia e hora, no mesmo local ou noutro espaço mais simpático, porventura com elementos naturais (como o mar ou um jardim) que contrabalancem e minorem o trauma da avaliação.
Em tudo tento encontrar um átomo de lógica, mesmo que polvilhada pelos muitos factores humanos. Mas há uma pergunta para a qual nem um átomo dela encontro: por que será que as três épocas especiais para os três estatutos de alunos (trabalhadores, finalistas e dirigentes associativos) não são coincidentes (mesmo que uma delas seja repetível de 2 em 2 meses)? Não é para responder...

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