2003-07-26

"O Nome e a Coisa"

A intervenção de Saramago no FSP deu já azo a muitos comentários, particularmente na blogosfera. Se regresso ao tema, é porque o último número da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique transcreve a intervenção na íntegra. Tem por título "O Nome e Coisa" e o tema é a democracia.

A primeira questão que se deve colocar é de saber se vale a pena comentar as opiniões de alguém com tão pouca autoridade para falar de democracia quanto Saramago. Citemo-lo:
Chegados a esta altura do discurso, é mais do que provável que no espírito de muitos dos que até agora me têm escutado com benevolência principie a despontar a incómoda suspeita de que o orador não tem nada de democrata, o que, como não deixarão de recordar os mais informados, pertenceria ao domínio das verdades óbvias, conhecidas como são geralmente as minhas inclinações ideológicas...
A afirmação é de uma ambiguidade desarmante. Os comunistas têm por hábito apresentar-se como democratas. Terá este comunista finalmente confessado a verdade, que como ele próprio diz, é perfeitamente óbvia? Ou a intenção era a afirmação ser irónica? Seria verdadeiramente irónico um comunista tentar ironizar acerca da sua própria adesão à ideia de democracia... Mas ignoremos por momentos o totalitarismo antidemocrático de Saramago, demostrado pelo seu apoio a regimes como o de Fidel Castro, só há muito pouco tempo por ele posto em causa, e vejamos o que ele tem a dizer sobre a democracia.

O mote da intervenção de Saramago é dado por duas citações da Política de Aristóteles, que aqui reproduzo:
Em democracia, os pobres são soberanos, porque são o maior número, e porque a vontade da maioria é lei.

[...]

A igualdade no Estado pede que os pobres não tenham mais poder que os ricos, que não sejam eles os únicos soberanos, mas que o sejam todos na proporção existente de uns e de outros. Este parece ser o meio de garantir eficazmente ao Estado a igualdade e a liberdade.


Aristóteles, Política, Livro 6, Parte II.
Destas citações, Saramago conclui que não vivemos numa verdadeira democracia:
Se não erro demasiado na interpretação desta passagem, o que Aristóteles nos está a dizer é que os cidadãos ricos, embora participando, com toda a legitimidade democrática, no governo da polis, sempre estariam nele em minoria, por força de uma imperativa e incontestável proporcionalidade. Em algo Aristóteles acertava: que se saiba, ao longo de toda a história, jamais os ricos foram em maior número que os pobres. Mas este acerto do filósofo de Estagira, pura obviedade aritmética, estilhaça-se contra a dura muralha dos factos: os ricos foram sempre aqueles que governaram o mundo ou que sempre tiveram quem por eles governasse. E hoje mais do que nunca.
As obviedades às vezes enganam. De facto, a argumentação de Saramago tem uma série de problemas. O primeiro consiste na dicotomia que estabelece entre cidadãos ricos e pobres. Pelo menos nas sociedades ocidentais actuais, tal dicotomia não faz qualquer sentido. Entre ricos e pobres, que de resto têm uma definição relativa, existe uma enorme classe média. Em Portugal, por exemplo, e de acordo com dados do INE publicados em 2001, a taxa de pobreza era de 23% em 1996 (página 69). Sendo razoável esperar que uma qualquer definição de riqueza não resultasse numa maior percentagem de ricos, pois como próprio Saramago diz "jamais os ricos foram em maior número que os pobres", sobra uma enorme maioria da população portuguesa que, justamente, não é nem rica, nem pobre. É a classe média. São os "odiosos" (pequeno-)burgueses. Parafraseando as palavras de Aristóteles, diríamos que "em democracia, os cidadãos da classe média são soberanos, porque são o maior número, e porque a vontade da maioria é lei".

Mas o ponto principal da argumentação de Saramago é a afirmação de que "os ricos foram sempre [e são hoje mais do que nunca] aqueles que governaram o mundo ou que sempre tiveram [e têm hoje mais do que nunca] quem por eles governasse". A que se refere Saramago? Aos governantes em si? Governam eles para os ricos? São eles ricos? A primeira questão tem a ver com a democracia representativa. A afirmação de Aristóteles de que "os pobres [leia-se a maioria] são soberanos" não se pode entender, à luz de uma democracia representativa, como significando que os governos tenham forçosamente de ser constituídos por cidadãos da classe social maioritária, mas sim que são por eles eleitos, para os representarem. Que é isso que se passa é evidente: de outra forma como poderíamos acusar governos sucessivos de eleitoralismo? Ou não é o eleitoralismo a tentativa desesperada de governar de forma que agrade aos eleitores, com os olhos postos nas próximas eleições? Infelizmente para o argumento de Saramago, nas democracias ocidentais os governos são eleitos essencialmente pela classe média e é para ela que governam. Se são ou não constituídos por cidadãos da classe média é irrelevante.

Mas não estou a ser inteiramente justo. Saramago continua a sua intervenção precisamente pondo em causa a democracia representativa:
Por outras palavras: não será verdade que, no exacto instante em que o voto é introduzido na urna, o eleitor transfere para outras mãos, sem mais contrapartidas que as promessas feitas durante a campanha eleitoral, a parcela de poder político que até esse momento lhe havia pertencido como membro da comunidade de cidadãos?

Parecer-vos-á talvez imprudente este papel de advogado do Diabo que aqui pareço assumir, começando por denunciar o vazio instrumental que nos sistemas democráticos separa aqueles que elegeram daqueles que foram eleitos, para logo a seguir, e sem recorrer à argúcia retórica de uma transição preparatória, passar a interrogar-me sobre a pertinência e a propriedade efectivas dos distintos processos políticos de delegação, representação e autoridade democrática. Será esta uma razão mais para que nos detenhamos um pouco a ponderar o que a nossa democracia é e para que serve, antes de pretendermos, como se tornou obsessão do tempo, que ela se torne obrigatória e universal.

[...]

Observando agora as coisas mais de perto, creio poder concluir que sendo o acto de votar, objectivamente, pelo menos em uma parte da população, uma forma de renúncia temporal a uma acção política própria e permanente, adiada e posta em surdina até às eleições seguintes, altura em que os mecanismos delegatórios voltarão ao princípio para da mesma maneira virem a terminar, ela, essa renúncia, poderá ser, não menos objectivamente, para a minoria eleita, o primeiro passo de um processo que, estando justificado pelos votos, não raras vezes persegue, contra as baldadas esperanças dos iludidos votantes, objectivos que de democráticos nada têm e que poderão, até, chegar a ofender a lei.
Saramago tem razão quando diz que os cidadãos abdicam do poder, pelo menos parcialmente, ao eleger os seus representantes. Também tem razão quando diz que os eleitos podem trair a confiança dos eleitores. É justamente por isso que há eleições regulares, bem como um conjunto de poderes que se equilibram e controlam mutuamente. Isto significa, naturalmente, que a democracia representativa tem problemas. Mas, serão esses problemas maiores ou menores que uma qualquer forma de democracia directa? Como pôr em prática uma democracia mais directa? Através do recurso regular ao referendo, como na Suíça? Saramago não dá pistas.

Para aumentar o efeito retórico dos defeitos da democracia representativa, Saramago não hesita em recorrer aos clichés habituais, que negam toda a evidência de crescimento económico, redução da pobreza e aumento do bem-estar que tem ocorrido na generalidade dos países possuidores do tipo de democracia por ele criticado:
Porém, a amarga experiência de todos os dias mostra-nos que o exercício de amplas áreas de poder [...] se encontra nas mãos desses [corruptos e corruptores] e de outros criminosos, ou dos seus mandatários directos e indirectos. Nenhum escrutínio, nenhum exame microscópico dos votos anónimos lançados numa urna seria capaz de tornar visíveis, por exemplo, os sinais denunciadores das relações de concubinato entre os Estados e os grupos económicos internacionais cujas acções delituosas, incluindo aqui as bélicas, estão a levar à catástrofe o planeta em que vivemos.
É evidente que a democracia representativa precisa de se ir refinando, precisa de ser melhorada continuamente. O que é menos claro é que Saramago tenha realmente algum contributo a fazer nesta matéria. Que propõe ele de concreto na intervenção? Apenas a democracia directa e uns conceitos dúbios como os de democracia económica e de democracia cultural. De resto, limita-se a enunciar os defeitos, alguns bem reais, das democracias representativas ocidentais, concluindo erroneamente que não se deveria tentar exportar um modelo defeituoso de sistema político. A conclusão é errónea pela simples e bem conhecida razão, tantas vezes esquecida quanto memorizada por ser óbvia, de que não se conhece melhor alternativa:
Também insistentemente se afirma que a democracia é o menos mau sistema político de todos os sistemas inventados até hoje, e não se repara que talvez esta conformidade resignada com uma coisa que se contenta com ser a "menos má" seja o que nos anda a travar o passo que nos conduziria para algo "melhor".
As aspas são apropriadas. Primeiro, porque o reconhecimento da democracia como o melhor dos sistemas políticos existentes não nos impede de o refinar continuamente, como de resto tem vindo a acontecer. Depois porque o sistema "melhor" a que Saramago se refere é o sistema comunista, de que o mundo se libertou quase totalmente, e em boa hora, e que foi causador de enormes injustiças, de mortes em massa e de infelicidade generalizada. Mas para Saramago os factos são outros:
Enfrentemos, portanto, os factos. O sistema de organização social que até aqui temos designado como democrático tornou-se cada vez mais uma plutocracia (governo dos ricos) e cada vez menos uma democracia (governo do povo). É impossível negar que a massa oceânica dos pobres deste mundo, sendo geralmente chamada a eleger, não é nunca chamada a governar [...]
Saberá Saramago que a "massa oceânica dos pobres deste mundo" não é chamada a votar, justamente? Que as democracias, com as suas imperfeições, estão infelizmente longe de serem o sistema político dominante? Mesmo admitindo que Saramago se enganou, e que se refere na realidade aos países democráticos, o argumento não colhe, pois aí, como já foi dito, os pobres são felizmente minoritários.

Finalmente, é curioso o argumento usado por Saramago para justificar que os pobres, supostamente maioritários nas democracias, não se auto-elejam: "os pobres nunca votariam num partido de pobres porque um partido de pobres não teria nada para lhes prometer". Apetece dizer que têm muito bom senso. Não há partidos "de pobres". Se algum se apresentar como tal, é de desconfiar.

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