2003-10-25
Mais uma vez o muro Uma sessão de emergência da Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou há dias uma medida contra construção do muro de protecção de Israel. Foi um erro. É preciso separar a construção do muro em si, que é triste mas necessária, do seu traçado, que se prepara para ultrapassar as fronteiras de 1967. Aglomerar as duas questões numa só e votá-las em bloco é um terrível erro. A separação física das duas comunidades é hoje uma necessidade, sendo fundamental que se restrinja às fronteiras de 1967 ou que, a ter desvios de forma a incluir colonatos israelitas, esses desvios sejam compensados com território do lado Israelita. Têm razão todos os que dizem que o muro será uma fronteira de facto. Isso não seria necessariamente mau, se o traçado fosse aceitável. Todos os esforços deveriam ir nesse sentido, de garantir um traçado que possa corresponder à futura fronteira entre os dois estados. Todos os esforços contra o muro em si são demagógicos, pois não reconhecem a evidente necessidade de separação entre os dois povos. Essa separação não será eterna, evidentemente. O muro acabará por cair. Mas a sua queda não será como a queda do muro de Berlim, ao contrário do que Nuno Pacheco escreve em editorial do Público: "Os comunistas leste-alemães, no antigo protectorado soviético, também cuidaram de se resguardar com um muro". O muro de Berlim foi construído pelo Leste não para o resguardar, mas para evitar as fugas de cidadãos de Leste para Oeste. Pelo contrário, o novo muro está a ser construído por Israel para evitar a entrada de terroristas. Além disso, o muro de Berlim separou um único povo, o novo muro separará, grosso modo, dois povos que aprenderam a odiar-se.
O que diz José Goulão De novo na revista Manifesto, José Goulão dedica-se a apresentar a sua teoria sobre a guerra contra o terrorismo. De uma forma inteligente, apresenta factos e factóides, junto com insinuações subtis, destinadas a fazer com que o leitor pense construir por si a teoria da conspiração que na realidade lhe está a ser inculcada pelo autor. A primeira insinuação tem a ver com as energias alternativas:
Outra insinuação tem a ver com a altura em que ocorreu a primeira guerra do golfo:
Mais à frente, José Goulão justifica as sanções e os ataques dos EUA e do Reino Unido ao Iraque, entre a primeira e a segunda guerra do golfo, da seguinte forma:
Segue-se uma explicação para a guerra ao terrorismo não ter (supostamente) produzido frutos:
Acerca do detestável regime Arábia Saudita, diz que:
Segue-se uma explicação adicional para as sanções ao Iraque:
E fico-me por aqui. Recomendo que comprem a Manifesto e a leiam. Aprende-se muito...
A "guerra ao terrorismo" reforçou o poder imperial militar e político sobre os recursos energéticos do planeta, situação determinante para as relações no Mundo, enquanto a Ciência não encontrar alternativas aos combustíveis fósseis. Uma área de atraso evidente - e intrigante - quando em tantas outras os progressos são exaltantes.Note-se bem que José Goulão não afirma nada de mais. Diz apenas que é "intrigante". Mas intrigante porquê? O objectivo de José Goulão é claro. Destina-se a levar o leitor a concluir, erroneamente, que o atraso resulta da vontade dos EUA de manter o mundo dependente do petróleo. A sugestão não faz qualquer sentido. Os EUA têm todo o interesse em aceder a formas de energia mais baratas ou a fornecimentos alternativos de petróleo. Acontece simplesmente que não é fácil. Na ciência como na técnica há mundo de aleatório na forma como o conhecimento avança.
Outra insinuação tem a ver com a altura em que ocorreu a primeira guerra do golfo:
A invasão do Kuwait, estranhamente "colada" ao fim da guerra Irão-Iraque, a um período muito alto do movimento popular palestiniano contra a ocupação israelita (Intifada - a revolta das pedras) e ao desmoronamento da União Soviética, proporcionou a maior coligação militar de sempre, sob liderança dos Estados Unidos e a bandeira da ONU, a afirmação de uma única superpotência no contexto mundial e o enfraquecimento irreversível do regime de Saddam Hussein.Repare-se no "estranhamente 'colada'". Que quererá José Goulão dizer com isto? Provavelmente que a invasão do Koweit foi, de alguma forma, provocada pelos próprios EUA, de forma a tirarem todas as vantagens apontadas.
Mais à frente, José Goulão justifica as sanções e os ataques dos EUA e do Reino Unido ao Iraque, entre a primeira e a segunda guerra do golfo, da seguinte forma:
Durante a década de 90, na falta de uma oposição credível ao regime de Bagdade e perante o receio norte-americano de que a Saddam sucedesse um quadro político e estratégico menos controlável, a opção por um regime iraquiano enfraquecido militarmente, impedido de exercer a soberania sobre a totalidade do território, tornou-se um vector da política externa dos Estados Unidos.A afirmação é contraditória, pois reconhece a inexistência de uma oposição credível, mas afirma que os EUA receavam que a Saddam sucedesse um quadro político e estratégico "menos controlável". Não se percebe de onde vinha tal "receio", não havendo uma oposição credível. Talvez José Goulão pretenda dizer que não foi do interesse dos EUA derrubar Saddam no final da primeira guerra do golfo, o que teria levado inevitavelmente a uma mudança de regime. Mas, dado que José Goulão se opôs à segunda guerra do golfo, não se percebe como pode criticar o não derrube de Saddam 10 anos antes, sobretudo quando se opôs também à primeira guerra do golfo. Mas admito que não. Que José Goulão não queira dizer nada disto. Mesmo assim, é notável a ausência de qualquer referência à ameaça que Saddam representava para os países vizinhos, a existência, comprovada pelos inspectores da ONU, de armamento de destruição em massa, etc.
Segue-se uma explicação para a guerra ao terrorismo não ter (supostamente) produzido frutos:
A "guerra contra o terrorismo" colocou dois países, Afeganistão e Iraque, sob a liderança político-militar norte-americana; não conduziu à captura dos alegados cabecilhas terroristas, Bin Laden e Saddam Hussein [note-se bem que bin Laden é apenas "alegado" cabecilha terrorista]; não desmantelou qualquer organização terrorista; não travou, antes pelo contrário, os atentados terroristas. O clima caracterizado pela insegurança e pelas medidas de excepção, nos Estados Unidos e em regiões mais sensíveis do Mundo, mantém-se. A "guerra contra o terrorismo" provocou, até ao momento, uma alteração de fundo das relações internacionais e do contexto estratégico no Médio Oriente e na Ásia Central. Todas as mudanças são favoráveis ao domínio norte-americano sobre rotas e recursos naturais estratégicos.Tudo encaixa. Os EUA beneficiaram com o terrorismo. Os EUA não capturaram bin Laden nem desmantelaram a Al Qaeda. A conclusão, sugerida apenas por José Goulão, parece óbvia: foram os EUA os instigadores do terrorismo da Al-Qaeda. A guerra ao terrorismo é uma cuidadosa encenação. Talvez bin Laden esteja escondido na Casa Branca e Saddam no Pentágono.
Acerca do detestável regime Arábia Saudita, diz que:
Seria ingenuidade admitir que os sauditas vivem com maior liberdade ou dignidade sob a monarquia waahbita do que os iraquianos viviam sob o regime de Saddam Hussein.Centenas de milhares de mortos deram voltas nas valas comuns em que estão enterrados quando José Goulão escreveu estas palavras.
Segue-se uma explicação adicional para as sanções ao Iraque:
Ao assumirem o poder em Bagdade, os Estados Unidos apropriaram-se de reservas petrolíferas alternativas às sauditas - mantidas praticamente incólumes durante mais de dez anos - [...]Como habitualmente, o segredo está nos pormenores. Neste caso é a sugestão subliminar de que as sanções económicas ao Iraque tiveram como objectivo, ou pelo menos como um dos objectivos, preservar o seu petróleo para o posterior saque. Mas, é claro, algo deve ter corrido mal com a apropriação do petróleo, pois parece que a intervenção irá custar muito dinheiro aos EUA.
E fico-me por aqui. Recomendo que comprem a Manifesto e a leiam. Aprende-se muito...
Fernando Nobre O presidente da meritória Assistência Médica Internacional não muda. O seu trabalho humanitário é acompanhado de uma ideologia cega. Lembro-me de o ouvir na televisão, aquando do ataque dos EUA contra os Talibã e a Al-Qaeda, dizer que era criminoso os americanos atirarem rações de combate dos aviões. A razão era simples: as embalagens eram amarelas e, segundo ele, confundiam-se com os explosivos não-detonados das bombas de fragmentação. Passou o tempo e, provavelmente à falta de algum acidente que justificasse a acusação de então, Fernando Nobre descobriu uma outra razão para o lançamento de rações de combate ser perverso:
Nunca me esquecerei do dia 7 de Outubro de 2001, no Afeganistão: aviões militares lançaram, em dois lugares diferentes, bombas e rações de combate. As bombas afugentavam as pessoas de um lugar, as rações atraíam as pessoas para outro lugar determinado.Revista Manifesto
2003-10-24
Benvindo? Há por aí muitas instituições que nas suas páginas na Internet me sugerem que seja "Benvindo". Mas eu sou Manuel, e estou muito feliz com o meu nome. Outras páginas anunciam-me estranhos pratos. A livraria Almedina, por exemplo, anuncia-me o seu "Benvindo à almedina.net!", como um qualquer restaurante me anunciaria o seu "Bife à Café". Estará a Almedina a diversificar o seu negócio? A dedicar-se à restauração? À antropofagia?
Bem-vindos ao mundo da iliteracia.
Bem-vindos ao mundo da iliteracia.
Catalaxia A propósito do lançamento do livro "É Difícil Ser Liberal em Portugal", de Carlos de Abreu Amorim, o Cataláxia escreve uma das melhores entradas sobre liberalismo dos últimos tempos. Não percam.
2003-10-22
Apertos de mão Os efeitos perversos do aperto de mão, no Sudão:
During September 2003, mass hysteria spread through Khartoum, the capital of Sudan, which was ultimately quelled by police intervention and statements made by the health minister. The panic was caused by rumors of foreigners roaming the city and shaking men's hands, making their penises disappear.(Via MEMRI.)
Greve? Cadeados em portas. Magotes de estudantes insultando colegas que não concordam com as razões ou a forma do protesto. Conivência de direcções escolares, que mantêm estabelecimentos escolares fechados o tempo suficiente para impedir o funcionamento das primeiras aulas e dar a sensação de que o dia seria de folga. Docentes, funcionários e alunos que aproveitam a deixa para ir à sua vida, apesar das portas finalmente abertas. Greve? Não, palhaçada. Estudantes imaturos? Não. Maiores e que como tal deveriam ser tratados.
2003-10-19
Discriminações Não se pode logicamente considerar que homens e mulheres têm características inatas diferentes ("se as mulheres tivessem o poder...") e simultaneamente assumir que a distribuição dos sexos não-paritária nas várias actividades humanas decorre necessariamente de discriminação ou de determinação social.
2003-10-18
Resolução 1511 Pouco menos de um ano depois da já famosa resolução 1441, foi hoje aprovada a resolução 1511 sobre o Iraque. São excelentes notícias. Alguns extractos da resolução:
6. Calls upon the Authority, in this context, to return governing responsibilities and authorities to the people of Iraq as soon as practicable and requests the Authority, in cooperation as appropriate with the Governing Council and the Secretary-General, to report to the Council on the progress being made;
7. Invites the Governing Council to provide to the Security Council, for its review, no later than 15 December 2003, in cooperation with the Authority and, as circumstances permit, the Special Representative of the Secretary-General, a timetable and a programme for the drafting of a new constitution for Iraq and for the holding of democratic elections under that constitution;
[...]
13. Determines that the provision of security and stability is essential to the successful completion of the political process as outlined in paragraph 7 above and to the ability of the United Nations to contribute effectively to that process and the implementation of resolution 1483 (2003), and authorizes a multinational force under unified command to take all necessary measures to contribute to the maintenance of security and stability in Iraq, including for the purpose of ensuring necessary conditions for the implementation of the timetable and programme as well as to contribute to the security of the United Nations Assistance Mission for Iraq, the Governing Council of Iraq and other institutions of the Iraqi interim administration, and key humanitarian and economic infrastructure;
14. Urges Member States to contribute assistance under this United Nations mandate, including military forces, to the multinational force referred to in paragraph 13 above;
[...]
20. Appeals to Member States and the international financial institutions to strengthen their efforts to assist the people of Iraq in the reconstruction and development of their economy, and urges those institutions to take immediate steps to provide their full range of loans and other financial assistance to Iraq, working with the Governing Council and appropriate Iraqi ministries;
2003-10-17
Lies, Damn Lies, and Statistics É o título de um livro de Michael Wheeler. Não o li, embora me tenha sido recomendado. O título, no entanto, é perfeito, e encaixa como um luva na notícia de primeira página do Público de hoje: "Um quinto da população portuguesa vive na pobreza". O artigo reza assim:
A pobreza em Portugal estacionou. Embora os bairros de barracas tendam a desaparecer da paisagem nacional, poucas alterações houve no perfil da pobreza e o fenómeno está longe de ser erradicado: um em cada cinco portugueses (cerca de 21 por cento da população) é pobre e os idosos pensionistas continuam a ser o grosso do problema.Ao lado, numa coluna, esclarece-se que "a taxa de pobreza relativa - número de pessoas que vivem com rendimentos mensais abaixo dos 60 por cento relativamente à média nacional - era de 21 por cento". Mais à frente afirma-se que "cerca de 21 por cento dos portugueses têm um rendimento inferior ao limiar de pobreza (cerca de 350 euros), seis pontos mais do que a média europeia de pobreza (15 por cento), indicam os dados mais recentes do Eurostat (referentes a 2000) publicados este ano". Ou seja, é claro que todo o artigo se baseia numa medida mais que duvidosa de pobreza. É que esta taxa de pobreza, relativa como é, manter-se-ia inalterada se todos os rendimentos em Portugal fossem duplicados ou mesmo decuplicados. Aliás, manter-se-ia se todos os rendimentos em Portugal sofressem aumentos ou diminuições percentuais uniformes. Não é honesto escrever artigos como os do Público de hoje, pois a pobreza não se pode medir (só) assim.
2003-10-14
O que eu queria ter dito sobre as propinas Está tudo nos artigos de Mário Pinto e de Rui Verde no Público de ontem. Tiraram-me as palavras da boca.
2003-10-13
Traduções apressadas O Público traduziu um artigo pouco interessante de Ralf Dahrendorf. A versão original do artigo pode ser encontrada no The Straits Times, de Singapura. A comparação entre os dois mostra até que ponto as traduções são negligenciadas nos nosso jornais. Um só exemplo: "those who could, left the Soviet zone and settled in the West; those who could not, faced the sullen existence of subjects rather than citizens" transformou-se em "quem pôde abandonou a zona soviética e instalou-se na parte ocidental, aqueles que não conseguiam enfrentar a existência sombria de serem sujeitos em vez de cidadãos". Ou seja, "súbditos" transformou-se em "sujeitos"...
2003-10-12
De novo a ciência Para os interessados nas "controvérsias científicas", ficam duas sugestões. A primeira é um debate na Livraria Almedina, na próxima sexta-feira, dia 17 de Novembro, às 19h, onde se procurará responder à pergunta "Há Filosofia Anticientífica?". Os participantes são Jorge Dias de Deus, Guilherme Valente e João Caraça. A segunda é uma conferência de Jean-Michel Berthelot, intitulada "Débats et Controverses Scientifiques", que terá lugar no ISCTE às 18h do dia 28 de Outubro.
2003-10-10
Hans Blix Vale a pena ler a entrevista de Hans Blix ao Le Monde. A sensatez usual:
A la lumière du rapport de l'ISG, comment jugez-vous la position de MM. Bush et Blair ?
Il me semble qu'ils sont embarrassés par le fait qu'il n'existe toujours pas de preuves de l'existence d'ADM en Irak. Il est possible d'affirmer que l'Irak serait devenu, dans un certain nombre d'années, une menace. Mais le régime ne pouvait pas agir à sa guise, en raison des inspections de l'ONU. Les Etats-Unis affirment qu'ils avaient le droit de mener une guerre préventive, mais sur la base de quoi ? Je ne leur reproche cependant pas d'avoir été de mauvaise foi. Ils ne savaient pas tout.
Croyez-vous que M. Bush et M. Blair aient menti ?
Non, le mensonge implique la conscience. On peut leur reprocher d'avoir déformé ou surinterprété les faits, pas d'avoir menti.
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